Como identificar uma fonte de fake news

Quando alguém faz uma acusação dizendo que algo é fake news, quase sempre – e muito provavelmente – é esse acusador que está espalhando notícias falsas

Para evitar um quiproquó, o erro de tomar uma coisa por outra – neste caso, uma notícia fake por outra factual–, é só prestar atenção na origem. Existe uma lógica que funciona: quando alguém faz uma acusação dizendo que algo é fake news, quase sempre – e muito provavelmente – é esse acusador que está espalhando notícias falsas.

Assim: o jornal The New York Times descobre informações da Receita Federal escamoteadas pelo presidente Donald Trump, referentes às décadas de 1980 e 1990. Os documentos revelam perdas de mais de US$ 1 bilhão em negócios malsucedidos. A notícia é relevante porque mostra que presidente talvez não seja o empreendedor genial que diz ser. A reportagem cita documentos, processos e fontes, explica longamente os esquemas de Trump e liga vários pontos. Trump vem a público, via de regra no Twitter, e diz: “Fake news”. Só. Seus simpatizantes não precisam de mais nenhum argumento. Essas duas palavrinhas resolvem tudo.

O presidente Jair Bolsonaro cancelou todas as assinaturas do jornal Folha de S.Paulo no governo federal, no último dia 31. A decisão veio um ano depois de afirmar, quando ainda era candidato, que “a Folha de S.Paulo é a maior fake news do Brasil”. Apesar da construção de frase meio torta – ele deveria ter dito que ela “é a maior fonte de fake news do Brasil” –, o que o presidente disse foi: “não quero saber de notícias apuradas por profissionais que sabem o que estão fazendo”. Isso ficou claro na reação do presidente à reportagem da TV Globo sobre o depoimento do porteiro que o implicou no assassinato da vereadora Marielle Franco, no Rio de Janeiro.

Parece contraintuitivo, mas dizer que uma notícia é fake não significa que a notícia está errada. Apontar erros de informação ainda está no âmbito da discussão civilizada. Se dou uma informação errada, você me corrige, eu reconheço o erro e faço a correção. Erros acontecem e erratas fazem parte do jornalismo honesto.

Fake news é algo mais ardiloso porque não se refere a um erro cometido inadvertidamente. Numa notícia fake, os desvios são calculados e têm o objetivo de manipular a opinião de quem lê. Como em uma notícia qualquer espalhada pelo WhatsApp, sem fonte nem autor (ou com fonte e autor falsos). Quem espalha esse tipo de fake news espera se beneficiar com a mentira, mobilizando o público a seu favor.

Enquanto a imprensa honesta tenta mostrar, com apuração e documentos, o tamanho dos absurdos que uma figura pública é capaz de fazer e de dizer, essa figura pública simplesmente berra “Fake news!” contra todo mundo que tenta fazer um trabalho decente de jornalismo. Trump faz isso nos Estados Unidos. Bolsonaro arremeda Trump direitinho no Brasil.

Notícias falsas não costumam ser bem documentadas e não aparecem em veículos de comunicação sérios. Até porque uma mentira ou uma informação mal apurada pode gerar processos e custar caro para um jornal ou uma emissora de tevê. Mentir, no jornalismo, é um mau negócio (isso deveria ser óbvio, mas pelo jeito não é). Nas redes sociais, a situação é outra e permite que se espalhe todo tipo de absurdo impunemente, contando com públicos dispostos a acreditar naquilo que querem acreditar.

“Abandonar os fatos é abandonar a liberdade. Se nada for verdadeiro, ninguém poderá criticar o poder, porque não haverá uma base para fazê-lo”, diz o professor de história Timothy Snyder, da universidade de Yale, no livro “Sobre a tirania”. E um dos modos de abandonar os fatos é assumir uma postura de hostilidade aberta à realidade verificável.

O jornalista David A. Graham citou um estudo do Pew Research Center na revista The Atlantic, em junho deste ano, afirmando que as fake news não só fazem as pessoas acreditarem em coisas falsas, mas também tornam as pessoas menos interessadas em consumir ou aceitar informações. Pouco importa de onde vem a notícia ou se ela foi confirmada com rigor por profissionais, se ela diz o que eu quero ouvir, deve ser verdade. Se, por outro lado, ela diz o que eu não quero ouvir, só pode ser fake news, certo?

A questão com as fake news é que elas sustentam a chamada era da pós-verdade, essa em que vivemos.

Quando o Oxford Dictionary escolheu pós-verdade como a palavra do ano lá em 2016, ficou definido que ela “se refere a circunstâncias em que fatos são menos influentes no processo de formar a opinião pública do que apelos à emoção e a crenças pessoais”. É mais fácil estimular o público a odiar um determinado jornal do que entrar numa discussão e explicar por que a notícia estaria errada (ou lidar com as consequências de ela estar certa).

A palavra pós-verdade é usada com frequência para se referir a um certo tipo de política e, de acordo com o Oxford, existe há pelo menos uma década (embora políticos mintam há mais tempo que isso). O uso dela, no entanto, aumentou bastante nos últimos anos, movido por dois fatos surpreendentes com consequências ainda incertas: o referendo no Reino Unido, em junho de 2016, que votou “sim” para a saída dos britânicos da União Europeia (o brexit, que virou um imbróglio sem fim), e a eleição de Donald Trump para a presidência dos Estados Unidos, em novembro do mesmo ano. Ambos os desfechos foram surpreendentes porque o jornalismo não conseguiu prevê-los, mesmo munido de tecnologia, pesquisas e estatísticas.

Existe algo mais que aproxima os dois eventos. Além de representarem uma guinada à direita, ao conservadorismo e até à extrema-direita, feita de figuras públicas que abertamente perseguem imigrantes e defendem medidas nacionalistas, as duas campanhas, de Trump e do brexit, usaram métodos escusos.

Na Inglaterra, a jornalista Katharine Viner, editora-chefe do Guardian, fala das manipulações do brexit no texto “How technology disrupted the truth” (Como a tecnologia sabotou a verdade). Um episódio citado por ela diz respeito a uma suposta economia que os britânicos teriam ao deixar a União Europeia. Segundo o movimento favorável à saída, sem as taxas e os impostos do bloco europeu, 350 milhões de libras semanais poderiam ser destinadas ao National Health Service, o serviço público de saúde britânico. O valor chegou a ser pintado num ônibus da campanha. Apesar de especialistas terem explicado que o cálculo estava errado – informação publicada no Guardian e em outros jornais –, a campanha pela saída continuava a alardear os 350 milhões de libras que seriam economizados. Pouco mais de uma hora depois de vencer o referendo no dia 24 de junho, o político Nigel Farage, um dos líderes do brexit, voltou atrás e disse que não era bem assim (fake news!), e que o país não teria esse dinheiro disponível.

Viner trata da era da pós-verdade como um dos percalços enfrentados hoje pelo jornalismo. Outros problemas estão ligados à tecnologia e às redes sociais, que dão aos internautas o poder de disseminar informações nem sempre confiáveis e a oportunidade (ou a inconveniência) de viver dentro de uma bolha em que algoritmos como o do Facebook filtram informações para o leitor selecionando mais daquilo que ele gosta ou conhece e eliminando o que ele não gosta ou desconhece. Nesse processo, as redes sociais parecem incapazes (ou não têm interesse, ou os dois) de reconhecer se as informações são verdadeiras ou falsas. O que importa, para elas, é garantir nossa satisfação. E nós estamos satisfeitos?

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Cinco referências:

1

A matéria do New York Times, sobre as perdas de mais de US$ 1 bilhão de Donald Trump nas décadas de 1980 e 1990.

2

A matéria da Folha, sobre o Bolsonaro.

3

A matéria de David A. Graham, na Atlantic.

4

A entrada do Oxford Dictionary sobre post-truth, a palavra do ano em 2016.

5

O texto de Katharine Viner, no Guardian.

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