Como garantir uma educação de qualidade em uma escola sem quadra, sem laboratórios e com salas inadequadas?

Quando comparamos as redes públicas com as privadas, as diferenças são enormes. Algumas são simplesmente estéticas, mas há grande parte delas efetivamente estruturais

Foi em junho de 2017 que tive um dos meus maiores choques de realidade. Há alguns meses trabalhava na Secretaria Municipal de Educação, como responsável no gabinete pelo planejamento estratégico. A convite da chefe de Estrutura e Funcionamento, tirei o dia para visitar com ela algumas unidades, a ideia era conseguir observar melhor quais eram as condições estruturais das nossas escolas. Queríamos ver a vida real.

Entramos na sala dos professores de um colégio. Era hora do almoço e as servidoras assistiam juntas um noticiário violento, que mostrava um acidente que tirou a vida de uma criança de cinco anos em uma outra unidade do município. Como estávamos perto, saímos correndo para lá, a tempo de ver algumas das cenas que mais me marcaram. Foi um acidente, um motorista manobrava um ônibus e acabou acertando o muro, que desabou na criança de cinco anos.

Não era um estudante da nossa rede, mas uma criança da vizinhança brincando na rua. Tinha a idade da minha filha. Um dos nossos projetos na secretaria era uma revisão estrutural de todas as escolas e CMEIs, incluindo dos muros, que há muito tempo não passavam por um programa de reformas. Alguns tinham décadas, eram baixos demais, ou pareciam estar prestes a cair. Eu não sei se o muro daquela unidade estava ruim, não sei se a falta de reformas contribuiu para a queda. Mas não consegui tirar isso da cabeça.

Apesar de ter dedicado alguns anos da minha vida pesquisando e estudando educação pública, eu estudei basicamente em escolas particulares. Quando me mudei para Curitiba, na 2ª série e fui matriculado no agora extinto Colégio Prieto Martinez, estranhei uma escola sem área verde, toda cimentada, sem parquinho e com uma quadra improvisada, na qual cantávamos toda semana o Hino Nacional.

Ainda fiz também a 8ª série em outra escola estadual, o Dona Carola. Mas só fui entrar novamente em uma instituição pública quando precisei matricular minha filha em um CMEI. Primeiro havíamos a colocado em uma creche paga, mas a experiência foi muito ruim e cara, então precisamos pedir vaga na unidade municipal.

Crédito da foto: PRES-AEN.

Não deixa de causar estranhamento a quem foi criado em escola particular estar em uma municipal ou estadual. Foi este estranhamento que percebi no ótimo texto de Jeferson Ferro, publicado dia 5 de dezembro no Plural. Que bom haver pessoas que conseguem perceber, como ele percebeu, e como eu tive que perceber na vida real, as necessidades da educação.

A escola é mais do que a estrutura, o aprendizado é muito mediado pelas relações que se estabelecem ali, tanto entre os estudantes quanto entre e com os profissionais da educação. Mas um bom ambiente passa também por uma estrutura adequada, sem janelas e pisos quebrados, com iluminação e condições climáticas adequadas. Também importa quais são as estruturas que servirão para amparar o ensino, faz diferença ter biblioteca, quadra coberta, internet.

Quando comparamos as redes públicas com as privadas, as diferenças são enormes. Algumas são simplesmente estéticas, mas há grande parte delas efetivamente estruturais. Entretanto, mesmo entre as escolas de uma mesma rede municipal ou estadual há deficiências diferentes. Não há igualdade entre o que se oferece aos estudantes.

Como exemplo, observemos alguns dados do Censo Escolar de 2019. De acordo com classificação do IBGE, há 37 municípios na Mesorregião de Curitiba, incluindo além dos da região metropolitana, também os do litoral. Fazendo a seleção destes nos microdados, e também escolhendo apenas os da rede pública que ofertem matrícula no Ensino Fundamental – Anos Iniciais (1º ao 5º Ano), há um total de 778 unidades. Destas:

  • 773 são municipais e 5 estaduais;
  • 736 funcionam em prédio próprio, 10 em alugados e 32 em cedidos;
  • 502 unidades têm esgoto ligado na rede pública, 178 em fossa e 115 não tem esgotamento sanitário;
  • 435 têm área verde, 343 não têm;
  • 47 têm auditório e 731 não têm;
  • 33 têm laboratório de ciências, 745 não;
  • 387 contam com laboratório de informática e 391 não;
  • 480 têm pátio coberto e 298 não;
  • 264 não tem quadra de esportes, 122 têm quadra descoberta e 392 cobertas;
  • 166 escolas não têm sala de diretoria, 145 não tem sala de professores;

São alguns dados, uma realidade que é muito visível. As reformas estruturais das escolas são basicamente financiadas pelo PAR – Plano de Ações Articuladas do FNDE/MEC. Nele os municípios inserem os projetos desejados, que se aprovados receberão as verbas, que atenderão integralmente ou parcialmente as necessidades. Também é possível que algumas prefeituras optem por financiar os projetos com recursos próprios ou ainda em financiamentos. Normalmente em todas as situações, o poder público esbarra em uma limitada capacidade de planejamento, quando não na falta de interesse político.

Crédito da foto: Arnaldo Alves /ANPr

Como garantir uma educação de qualidade em uma escola sem quadra, sem laboratórios e com salas inadequadas? Como aceitamos escolas sem esgotamento sanitário?

Não é incomum, principalmente em época de eleições, ouvirmos discursos que se dizem meritocráticos na educação. Volta e meia algum candidato que advoga uma visão mais empresarial defende premiações para as escolas que tiverem melhores resultados em provas padronizadas, ou coisas do tipo. O IDEB (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica) mesmo acaba por ser visto como um indicador da qualidade do ensino, o Governo Ratinho mesmo o utiliza como propaganda. Mas já disse um ministro uma vez que “Meritocracia sem igualdade é forma velada de aristocracia”.

Como promover a igualdade? Uma iniciativa do NUPE – Núcleo de Políticas Educacionais da UFPR aponta numa direção interessante. Os pesquisadores propõem o Índice de Condições de Qualidade (ICQ), que é uma metodologia que visa auxiliar a estabelecer elementos mais objetivos para a avaliação da relação entre política e qualidade. Nele são considerados no cálculo as Condições Materiais da Escola (estado de conservação; iluminação e ventilação; limpeza da escola; existência de computadores e internet; conservação dos equipamentos eletrônicos e conservação do material pedagógico), o Índice do Professor (que avalia as condições docentes) e o Índice de Gestão da Escola. É cabível que se façam estudos mais aprofundados, mas considerando que temos no IDEB nossa principal política de responsabilização (accountability), voltada aos resultados, seria interessante que pensássemos em uma política que verifique as condições oferecidas aos estudantes e profissionais. Os agentes públicos têm de ser responsabilizados pelo que oferecem, mais do que pelos resultados em provas padronizadas.

Cabe também ressaltar que para além das informações que são públicas e visíveis, há também outros problemas que são profundos. Um exemplo é a falta do laudo de vistoria do Corpo de Bombeiros nas escolas. Não há publicidade nestes números, mas não é arriscado assumir que a maioria das unidades não tem este laudo. Uma vistoria do TCE em 2018 encontrou 124 escolas sem ele, talvez fosse o caso de começarmos a pensar uma política pública para garantir a segurança dos estudantes, começando por saber realmente quantas escolas estão certificadas pelo Corpo de Bombeiros. Talvez seja a forma mais adequada de pedir militares na educação.

Crédito da foto: Seed.

Há também de falta de estrutura quanto às instalações elétricas e hidráulicas, algumas datando de muitos anos. E os evidentes problemas de falta de acessibilidade.

Eu gosto muito quando vejo um veículo de mídia levantando o debate sobre as escolas, é raro. Mesmo dentro dos debates políticos, atualmente se aponta como problema para a educação apenas a falta de vagas de Educação Infantil, que é enorme. Ao participar de qualquer audiência pública de orçamento, é perceptível como a educação não é prioritária, e quando é citada é apenas nesta questão das creches.

Mas então, para além do choque das diferenças entre o público e o privado, entre o ideal e o oferecido, o que precisamos fazer? Primeiro é dar visibilidade aos dados, isto pode ser feito através de uma gestão democrática. Muitas vezes não é interessante aos prefeitos e agentes políticos divulgar necessidades e desafios. Talvez agora, momento de mudança de gestão em muitos municípios, seja o momento de fazermos isso.

Dois instrumentos de gestão democrática são a instituição e efetivação do Conselho Municipal de Educação e do Fórum Municipal de Educação. Ao que eu saiba, nenhum município da Região Metropolitana tem um fórum funcionando. Ele serve justamente para organizar estudos, aproximar o poder público das universidades, e realizar conferências de educação, além de monitorar os Planos Municipais de Educação.

Talvez ao encarar os desafios, passemos a também exigir um planejamento adequado para eles. E também um financiamento. Uma escola de qualidade exige recursos, e o caminho é a instituição do CAQ – Custo Aluno Qualidade, já previsto no Plano Nacional de Educação.

Temos, portanto, um cenário de desafios na educação pública, mas que devem ser encarados. Lembrando que a educação está sob ataque, tendo sido aprovado nesta semana uma regulamentação do Fundeb na Câmara que tem um caráter privatista, que privilegiará as terceirizações e poderá promover a precarização da carreira docente.

O primeiro passo é reconhecer a necessidade de uma escola pública gratuita, universal e de qualidade, algo que ainda não temos, mas que não podemos deixar de almejar. Depois devemos ter um real controle de onde estamos e de onde queremos chegar, qual a situação das nossas escolas e qual escola sonhamos. E para além disto, devemos agir.

Sobre o/a autor/a

1 comentário em “Como garantir uma educação de qualidade em uma escola sem quadra, sem laboratórios e com salas inadequadas?”

  1. Perfeito o seu texto Allan. Você foi claro e objetivo,,fez um RAIO X da escola pública.
    Uma pena que poucos governantes se preocupem com a qualidade do ensino, a grande maioria quer pó de arroz e batom.

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