Como analisar o discurso de Greca negando o racismo

A análise do discurso mostra o que há de pior no subtexto do que o prefeito falou

(01) “Não há racismo estrutural em Curitiba”; (02) “cresci numa casa onde Enedina Marques conosco estava sempre”; (03) “Pode ser que isso exista”; (04) “Ela é uma boa professora”; (05) “Está começando um mestrado”; (06) “Dei o meu livro de presente a ela”; (07) Espero que as pessoas sejam iguais, ainda além da cor da pele”; (08) “Vale mais o que as pessoas têm no coração”; (09) “a cor da pele é uma contingência de quem foi criado mais perto do Equador”.

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Comecemos pelo descompasso das orações. A negativa peremptória da oração 01 não encontra eco no sentido das demais. Todas contradizem a oração 01, cada uma a sua maneira, mas a oração 03 é radical nesse sentido: “pode ser que exista”. Então existe.

Claramente, o falante não sabe do que se trata. Desconhece provavelmente o sentido da expressão “violência estrutural”. Ocorre muito comumente com outras expressões, como “violência simbólica”. Embora esta e aquela já sejam usadas há certo tempo no meio acadêmico principalmente, seus sentidos respectivos não são do conhecimento de todos. Alguns conceitos ligados ao gênero, à etnia/raça, à economia, são recentes. Ninguém é obrigado a conhecê-los todos e desconfio de quem passeia por “negritude”, “branquitude”, “contrassexualidade”, “ordoliberalismo”, etc., como se surfasse.

Bem, as quedas no surfe são frequentes e podem ser muito perigosas. Mas digamos que o falante em questão desconheça a expressão e que confunda expressões do mesmo campo semântico ou cognatas ou similares. O racismo estrutural vive nos interstícios do discursos e das práticas. É ele que leva ao ato racista, à ofensa racial, à injúria. Desconfie de quem domine um arsenal teórico muito extenso. Isso é para mentes brilhantes e para leitores assíduos, para polígrafos ou polímatas. Não é o caso.

Há muitos anos, alguém berrou para o falante: “veado”. A resposta, famosa nos manuais políticos locais foi: “não governo com a bunda”. A homofobia é estrutural também. Ela leva a atos como esse. Desdenhar ou negar o racismo estrutural é como negar a homofobia — e respostas engraçadas, levianas, descuidadas, imorais ou amorais não anulam aquilo que é, justamente, estrutural, aquilo que atravessa o discurso e embasa o ato. E a língua é chicote da bunda, dizem, sabiamente.

A frase 02 eu diria que é a mais perversa de todas. Demorei a, para além do ouvir, assimilá-la. Duvidei dela, confesso. Seu paralelo no Brasil é “mas fulana [negra] é da família” e “até se senta na mesa” e “foi criada dentro de casa” e “até brinca com as crianças” e “fomos ao casamento dela” e “somos padrinhos de seus filhos” e “seus filhos brincam na nossa piscina” e por aí vai.

Mas ela é mais perversa do que aparenta, assim, por essas simetrias semânticas e pragmáticas. Seu fundamento é histórico, cultural, sociológico?: advêm de um mundo de severo apartamento de seres. Foram 300-400 anos de escravidão no Atlântico e a presença na língua é algo assustador. Explicá-lo não é aceitá-lo. Muito pelo contrário. Crer que a primeira diáspora negra não se deu sem dores profundas, irremediáveis, não é apenas negação ou rebeldia — é crueldade.

Enedina se formou engenheira em 1945, pela UFPR. Há uma rua no Cajuru que a homenageia. E uma escola em Pinhais. Mas que se veja: Curitiba tem parques, praças e monumentos a diversos povos (ucranianos, poloneses, alemães, portugueses, japoneses, árabes), mas nenhum parque ou praça ou monumento de relevância à população africana. Há anjos, Confúcio, um papa, um cavalo babão, dedos que saem do chão, etc. Há uma perversidade tão grande nesse comentário, que mil Mbembes seriam necessários para sufocá-la.

Daí vem a série de orações (04, 05 e 06) que tentam “levantar” a pessoa ofendida. A vereadora eleita, desde o dia 15, sofreu vários ataques racistas. Embora o pior deles tenha vindo (supostamente) de uma pessoa do Rio de Janeiro, a quantidade de ataques locais é chocante. Negá-los, além de não dissolver o racismo — estrutural ou não —, é sim fortalecê-lo, é dizer não ao óbvio. O que a vereadora tem sofrido ocorre todos os dias com milhares de cidadãos tão curitibanos quanto qq outro com nome eslavo, nórdico, germânico, italiano, português, japonês, coreano… Em vez de negar o que já foi negado, é hora de trazer à luz a cultura formadora da língua, da identidade, dos afetos, das dores, das contradições, da comida, da música brasileira, paranaense, curitibana, de cada bairro, cada rua e casa. E posicionar esse outro num espaço familiar, como se brincássemos de casinha, mantém o distanciamento social da comunidade negra, que morre mais, ganha menos, sofre mais, mora mal, come mal, é morta pela polícia e perseguindo nos corredores do Carrefour e da Havan.

Para os analistas discursivos, uma das grandes incógnitas (in + cogito) do discurso não é sua estrutura e seu papel semântico ou pragmático (por isso quando juristas falam em semântica, é permitido que se tenha três surtos seguidos). A grande pergunta é “o que atravessa o discurso?”, ao que se pode acrescentar “e que o antecede”, pois nenhum discurso nasce do nada: ele tem um “archê”, um passado, nem sempre possível de mapear, rastrear, e mesmo que fosse possível talvez não seja essa a função da AD, uma vez que o presente é que importa e os sentidos possíveis.

Na língua, as estruturas mais próximas dessas três orações é “ele/ela é até uma boa pessoa, MAS”. É essa conjunção adversativa que move todo o resto. Trata-se de uma clara e indiscutível negação. No caso, como mostram as orações subsequentes (o discurso é um todo e nada isolado, lembre-se), o sentido é o seguinte: “ela é até uma boa pessoa, mas é novata, iniciante, desacostumada à complexidade política”. Isso fica muito claro com a oração 05 e a oração 06: “está no início de um mestrado: ainda tem chão pela frente” (em verdade, faz doutorado) e “ATÉ dei de presente a ela MEU livro”, ou seja, para que ela aprenda algo comigo, Eu, historiador, EU político de longa experiência, Eu, que sei tudo e posso citar pessoas negras como Enedina.

O apagamento do sujeito negro na cidade vem de longa data. É uma política de apagamento — e como costumo dizer, uma política de grandes efeitos e muito bem planejada (no pior sentido que isso possa ter). Trago três exemplos: a) o falecido Jorge Narosniak fez, certa vez, uma pesquisa sobre sujeitos negros (sujeitos assujeitados) em Curitiba e no Paraná. Por óbvio que a emissora não se interessou pelo assunto. A desculpa era que a história violenta era muito pesada para colocar no ar; b) é conhecido de todo sujeito acima de 30 anos que lida com publicidade que o dono de uma grande instituição de ensino proibiu uma foto de alunos da faculdade (para uma propaganda) porque em primeiro plano havia um cidadão negro; ele “até admitia o negro na foto”, mas desde que fosse atrás dos brancos; c) as indústrias de cosméticos “descobriram” a comunidade (a maioria da população) afro-descendente há pouco tempo: antes não havia produtos para peles mais escuras e tampouco propagandas com negros protagonistas. O que se vê hoje é resultado das lutas negras/pretas, certo? Claro. Mas ao mesmo tempo o mercado “descobriu” o poder do dinheiro das pessoas com outos tons de pele. Isso ocorreu nas faculdades após o banho de bolsas do governo Lula e, veja que coincidência, com a mudança social ocorrida nos anos 2000 e 2010, o sujeito afrodescendente começou a aparecer na mídia e mil produtos foram surgindo. Mas a negação continua, embora o movimento seja sem volta — e a luta se intensificou.

Mas a negação no discurso continua também, em variados matizes, como ocorre nas frases 07, 08 e 09. Antes, porém, um adendo. Por que uma doutoranda precisaria de um livro doado (com as abordagens que tem), sendo que à disposição há o que de melhor a teoria trouxe para a historiografia, a política, a economia? Simples: porque ela é uma novata. Temo digitar que “em sendo afrodescendente, vai precisar de auxílio intelectual”: “eu até dei meu livro a ela”, a uma subalterna.

As orações 07 e 08 são o que de pior pode haver para a realidade negra (estou usando o termo de Mbembe, e o usado por Gilroy). Num discurso que se assemelha tanto às estruturas nada vazias das cerimônias religiosas (notadamente as cristãs; nada vazias porque falsas) e também às estruturas dos discursos de auto-ajuda e das áreas de coaching, ele é falso por dois motivos: primeiramente porque as pessoas não são iguais, mesmo que isso seja um direito constitucional, mesmo que as religiões assim o digam, mesmo que um negacionista grite aos quatro ventos que racismo não existe; em segundo, porque nega o que foi dito antes. Se há um “desejo de que” as “pessoas sejam” (note que o modo verbal aqui é o subjuntivo), é porque elas não são. O discurso como um todo, então, é recheado de lapsos, de ciladas construídas pelo próprio orador, um discurso negacionista mas que nega a si mesmo. Ele é uma teia de atos-falhos.

O arremate não poderia ser pior. O teor biologizante, naturalista, sobre o fenótipo, joga numa vala comum toda a construção histórica do sujeito assujeitado. Além de falso, cretino, infantil. Jogar para a cor da pele e a igualdade universal uma solução para meio milênio de escravidão (pois que ela continua, com diferentes roupagens, num país que prende, pune e mata sujeitos negros/pretos) é insustentável e insuportável.

“Vale mais o que as pessoas têm no coração”. Se você acompanha mesmo que mal e parcamente o que ocorre na cidade (e aqui vai uma intuição, a única deste texto), vejo duas referências aqui: ao único candidato que — mesmo de longe — podia colocar o cargo maior da prefeitura em risco e ao outro candidato negro que bate de frente com o discurso moralista e falso do alcaide. Ele quer dizer: “ah, a pessoa pode ser negra, MAS desde que seja boa”. Como uma boa professora… desde que não ofereça ameaças e riscos.

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4 comentários em “Como analisar o discurso de Greca negando o racismo”

  1. Esse senhor espelha exatamente o pensamento das pessoas que o elegeram – político morto que era em 2016 – e o reelegeram tranquilamente em 2020. Esse é o pensamento da maioria dos curitibanos, basta ver sua indignação com relação às cotas racias em qualquer ambiente.

  2. Gostei da matéria mas não entendi a indignação com a frase (09) “a cor da pele é uma contingência de quem foi criado mais perto do Equador”. Isso não é um fato científico de adaptação dos nossos corpos em função do sol?

  3. Rodrigo Wolff Apolloni

    Texto excelente, que vai na veia da questão: Curitiba é uma cidade “europeia” que apaga a sua negritude, a despeito de os negros a terem construído bem antes dos imigrantes. E de estarem aí, nas batalhas e, inclusive, nos genes de quem não se vê, senão branco. Quanto ao Greca, se a gente parar para pensar, ele é todo “estrutural” – tenho a impressão de que, se Jesus, Oxalá ou Buda descerem para ele numa noite fria em Piraquara, acabam tomando lição.

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