Combinaram com os russos?

A maior preocupação da Rússia, com a adesão ucraniana à Otan, é o incômodo de um vizinho cada vez mais ocidentalizado e a instalação de bases militares e de mísseis de defesa norte-americanos ao lado do seu território

Conta a lenda que, antes do jogo contra a União Soviética na Copa de 1958, o técnico do Brasil, Vicente Feola, fazia uma preleção com um esquema extremamente sofisticado de como chegar ao gol, que seria marcado por Mané Garrincha. O anjo das pernas tortas teria então perguntado: “seu Feola, o senhor combinou com os russos?”. Esse texto fará um brevíssimo histórico das relações entre o Ocidente, Rússia e Ucrânia para saber se a pergunta deveria ter sido feita quando a Otan planejou a instalação de mísseis balísticos de defesa no território da Ucrânia.

A questão da instalação de baterias no quintal da outra superpotência não é nova. Em 1962, a União Soviética instalou mísseis de ataque em Cuba e o mundo parou a respiração, afinal era o auge da Guerra Fria e EUA e URSS estavam perto de usar suas armas que tinham (e têm) a capacidade de destruir o mundo múltiplas vezes. A solução foi Kennedy e Krushchov usarem a linha vermelha, os EUA retirarem mísseis da Turquia e a URSS tirarem os de Cuba, sob protesto de Fidel Castro e de uma multidão que gritava “Nikita Mariquita, lo que dá no se retira”.

Essa foi a única vez em que houve o sério risco de a humanidade desaparecer sob os escombros de uma hecatombe nuclear, apesar da tensão da Guerra Fria. Ironicamente, foi o que se chamou de MAD (não por acaso, o acrônimo que dizer Mutually Assured Destruction – destruição mutuamente assegurada – também é a palavra para “louco”) que possibilitou essa relativa paz. Garantia-se, nesse sistema, que um país pudesse retorquir, sem limites, a um ataque do outro. A consequência seria a aniquilação total dos dois países, o que aumentava a responsabilidade e os custos de uma operação militar nuclear.

A tecnologia possibilitou que os países desenvolvessem mísseis de longo alcance e antibalísticos, o que ameaçou esse “equilíbrio do terror” ao impossibilitar ou dificultar retaliações. Para evitar isso, EUA e URSS assinaram dois tratados: o SALT 1 (Strategic Arms Reduction Talks), de 1968, congelou o número de lançadores de mísseis intercontinentais, e o ABM (Anti-Ballistic Missiles Treaty), de 1972, proibiu o uso de mísseis capazes de defender os territórios de ataques nucleares. A celebração desses tratados está no contexto da détente, a redução da tensão entre EUA e URSS que começou nos fins da década de 1960.

A Otan, diga-se, foi fundada em 1949 com a finalidade de proteger a Europa Ocidental do avanço do Exército Vermelho pós-Segunda Guerra Mundial, por meio do princípio da segurança coletiva, segundo o qual o ataque a um país integrante significa um ataque a todos os outros.

O fim da URSS trouxe um grande problema: a Ucrânia tinha o terceiro arsenal nuclear do mundo e, embora o acesso fosse apenas físico, já que os códigos eram detidos apenas por Moscou, era necessário desnuclearizar o país para evitar que as ogivas pudessem cair em mãos erradas. Em 1994, Rússia, EUA e Grã-Bretanha assinaram o Memorando de Budapeste, garantindo a integridade territorial da Ucrânia e de outras ex-repúblicas soviéticas, que enviariam todas as suas armas nucleares à Rússia e adeririam ao Tratado de Não-Proliferação Nuclear.

Os EUA se retiraram do ABM em 2001 logo após os ataques de 11 de setembro (e na esteira do desenvolvimento do programa “Guerra nas Estrelas”, criado por Ronald Reagan) e a Rússia retomou o aumento de suas capacidades militares. Desde então, a expansão a leste da Organização do Tratado do Atlântico Norte, com a adesão dos países Bálticos, de Polônia e vários outros da antiga Cortina de Ferro, tem sido entendida pela Rússia como a grande ameaça aos seus interesses geoestratégicos, e o flerte cada vez maior entre a Otan e a Ucrânia foi o principal fundamento geopolítico russo para a operação militar.

A Otan, diga-se, foi fundada em 1949 com a finalidade de proteger a Europa Ocidental do avanço do Exército Vermelho pós-Segunda Guerra Mundial, por meio do princípio da segurança coletiva, segundo o qual o ataque a um país integrante significa um ataque a todos os outros (o primeiro secretário-geral dizia que o objetivo era manter a Rússia fora, os EUA dentro e a Alemanha por baixo). Com o fim da Guerra Fria, a Otan perdeu sua principal razão de ser, mas mantém a oposição à Rússia, fundada, entre outros motivos, nas teorias geoestratégicas do “heartland”, segundo o qual quem controlasse a região que corresponde à Rússia até a Alemanha dominaria o planeta.

A maior preocupação da Rússia, com a adesão ucraniana à Otan, é o incômodo de um vizinho cada vez mais ocidentalizado e a instalação de bases militares e de mísseis de defesa norte-americanos ao lado do seu território. Também está em jogo de interesses imediatos a finalização do Nordstream 2, o mega gasoduto para vender gás natural à Alemanha, a tentativa de anexação das regiões de maioria russa de Luhansk e Donetsk e a manutenção do acesso marítimo a águas quentes por meio da Crimeia, mar de Azov e Mar Negro, embora esse já houvesse sido garantido com a invasão de 2014.

Explosão em cidade ucraniana. Foto: Agência Brasil.

Quiçá as hostilidades cessarão se e quando o presidente da Ucrânia cair, o que não é difícil de ocorrer num horizonte de curto prazo e ante a avassaladora, ao menos no início, ofensiva russa. O comediante e vencedor da Dança dos Famosos de 2006, eleito com o discurso de “outsider” e “contra a velha política” e na esteira da “revolução colorida” do “Euromaidan” de 2013/14, será sacrificado sem muita cerimônia pelas potências ocidentais para a obtenção de uma paz que será humilhante ao Ocidente e benéfica para a Rússia.

Aparentemente, o gigante euroasiático terá aproveitado a brecha das alegações de violação aos direitos da maioria russa de Donetsk e Luhansk e da ameaça representada pela Ucrânia na Otan para, ao mesmo tempo, garantir praticamente todos os seus interesses regionais, manter Kiev sob sua órbita por meio de um provável governo títere que substitua Zelensky, ativar seu complexo industrial-militar, mandar um recado principalmente aos EUA para que não tentem interferir na sua zona de influência e praticamente zombar das sanções anunciadas pelos países ocidentais, as quais são contrabalançadas pela excelente relação de Moscou com Pequim, que não trazem qualquer prejuízo palpável ao país e não reduzem a dependência energética da Europa em relação à Rússia.

A movimentação geopolítica que deu vazão à operação militar russa no território ucraniano foi, até agora, um grande fracasso do Ocidente. A Rússia, ao invadir a Ucrânia, viola flagrantemente vários princípios de Direito Internacional e Tratados (mais nomeadamente a proibição do uso da força para resolução de conflitos inscrito na Carta da ONU, o Memorando de Budapeste, o Acordo de Minsk) e a Europa e os EUA nada farão na prática senão assistir aos horrores de uma guerra a duas horas de avião de Berlim e que pode causar o êxodo de até 4 milhões de pessoas, sob pena de a emenda ficar pior que o soneto.

Atrair a Ucrânia à órbita da Otan foi mais ou menos como a estratégica do “seo” Feola, que não combinou com os russos. Naquele jogo de estreia de Garrincha e Pelé com a camisa da seleção, Mané passou em branco e a vitória brasileira por 2 a 0 foi garantida com gols de Vavá. Em 2022, tudo indica que a Rússia (ou será o Comitê Olímpico Russo?) levará os três pontos, às custas de muitas vidas perdidas, prejuízo à infraestrutura da Ucrânia e um rastro de destruição do Direito Internacional.

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