Ativismo e pandemia: a viralização de ideias e a propagação do vírus

Brasil e Estados Unidos, países governados por presidentes polêmicos, conservadores e de direita, e, coincidentemente, ou não, nações que lideram o número de mortos e de infectados pela Covid-19

Publicar um ensaio sobre comunicação política em momentos de tensão social quase dá para comparar a uma análise sobre final de campeonato de futebol, tamanha a proporção emocional que o assunto toma. Virá vaia. Virá aplauso. Possivelmente, a mera comparação inicial já pode ser alvo de críticas, como se esporte e política não tivessem nada em comum. O caráter competitivo de ambos e os ares passionais de “torcida” que grupos políticos vêm adotando reforçam as semelhanças entre si. 

Minha intenção aqui é tentar mostrar um argumento racional frente a um contexto pandêmico que abrange a maioria dos países. Especificamente, traçarei paralelos breves entre Brasil e Estados Unidos, países governados por presidentes polêmicos, conservadores e de direita, e, coincidentemente, ou não, nações que lideram o número de mortos e de infectados pela Covid-19. A trágica morte do cidadão negro George Floyd, provocada pela polícia nos Estados Unidos, reforça o racismo estrutural que vive aquele país cujo número de assassinatos de pessoas negras por policiais brancos é 2,5 vezes maior que o número de brancos. A segregação racial, inclusive estava amparada por lei em alguns estados até meados do século XX, cujas regras previam instalações separadas em locais públicos para negros e brancos. Portanto, ainda que o amparo legal para o racismo não exista mais, o pensamento racista está incutido no comportamento e nas atitudes socioculturais tanto lá, quanto aqui.

A morte de George Floyd por policiais nos EUA provocou ondas de protestos em todo o mundo contra o racismo. Crédito da foto: Pam Santos/Fotos Públicas

O 13º. Anuário da Violência no Brasil, divulgado em 2019, revelou que 75% das vítimas das polícias no Brasil eram negros. Em 2020, as recentes mortes de João Pedro (14 anos) e de Anna Carolina de Souza Neves (8 anos) indicam imprudência e práticas de “atirar primeiro e depois perguntar”. É uma estrutura violenta de discriminação, de injustiça social e econômica sobre pessoas cujos antepassados foram escravizados e trazidos ao nosso continente, sofrendo as mais cruéis atrocidades. A discriminação estrutural se reproduz nos comentários da imprensa durante a cobertura dos protestos antirracistas, conforme relata a reportagem do Intercept Brasil

Os abusos não pararam na abolição das leis escravocratas, pois seguem impregnadas nas estruturas patriarcais de dominação, as quais determinam que homens brancos são os donos do mundo. Isso explica a exclusão de negros, mulheres, indígenas, quilombolas, LGBTI+ em todas as esferas do protagonismo, não apenas do político-eleitoral. Vide algo simples: quantas lives você viu com pessoas negras? Se não há visibilidade positiva em esferas menores, a tendência é não haver representatividade nas eleições. Ao contrário do que se crê o sistema patriarcal não apenas interfere na vida das mulheres. Afeta qualquer indivíduo em condições menores de renda e de poder em relação aos engravatados brancos, ricos, de meia idade, que decidem sobre a vida dos milhões. Aos beneficiados pelo sistema patriarcal interessa manter a dominação sobre outros homens e mulheres para que seus próprios privilégios não se alterem.

Dito isso, é importante introduzir, ainda que brevemente, o conceito de propaganda, implementado pela Igreja Católica, nos idos de sua dominação econômica junto com os reis. Era preciso “propagare”, como cunhou o papa Gregório, no século XVII, sobre a necessidade da ampliação da fé católica. Para a igreja, naquele momento, e não apenas lá, ter seguidores não questionadores, sob o domínio do discurso do medo era fundamental em seu domínio ideológico, por consequência, econômico e político.

Portanto, a propaganda, como essência, tem o objetivo de disseminar ideias e, para tanto, atua por vias periféricas de persuasão influenciando, principalmente, as emoções. Ela significa “plantar” e inserir ideologias, ou fixar ideias do que seja certo ou errado, portanto, não acontece de uma hora para a outra. É um processo contínuo em vários meios como nas escolas, em seus livros didáticos, nas famílias, igrejas e grupos religiosos em geral; nas instituições representativas e, claro, nos meios jornalísticos, de entretenimento e redes sociais digitais. No discurso propagandístico está o medo, o amor, a alegria, o ódio e a compensação pelo suposto cumprimento de comportamentos defendidos nas mensagens.

Donald Trump, presidente dos EUA.

O teórico Jean-Marie Domenach, ao explicar as estratégias da “Propaganda Política” listava, entre elas, a orquestração de conteúdo entre os meios de divulgação, a escolha de um inimigo único, a repetição de palavras de ordem e a simplificação. Exemplifico, inicialmente, com dois pontos atuais no Brasil: a palavra “fascismo” e a expressão “ideologia de gênero”. Em um de seus livros, a filósofa Marcia Tiburi explana que uma das bases do fascismo é a negação do outro, portanto é o autoritarismo e está ligado aos estados repressores. O fascista é antidemocrático por não aceitar o Outro. Neste sentido, qualquer extremo poderia ser fascista?

Sobre “ideologia de gênero” cujos esforços do conservadorismo insistem em passar leis sobre algo que não existe é outro exemplo de como a propaganda é eficaz quanto à deturpação. Ideologia é uma forma de ver a vida e, como consequência, tomar decisões. Portanto, todas as pessoas possuem a sua. Gênero é uma construção social sobre feminino e o masculino, portanto, não está relacionado com sexo necessariamente. Todas as ações para inserção de um debate sobre o tema “gênero” nas escolas são para evitar, entre outras coisas, os abusos sexuais contra crianças e adolescentes. A quem interessa que as crianças não saibam identificar o que ocorre dentro de casa?

Entre outros exemplos de narrativas propagandísticas construídas no decorrer do tempo no Brasil, há um partido político que hoje é ‘culpado’ por toda e qualquer problemática; qualquer pessoa que questione a gestão do governo federal atual é chamado de “comunista”, se a pessoa tem algo de senso crítico ou diverge sobre determinada forma de enfrentamento de um problema social logo perguntam “mas você é petista?”, com cara de escândalo. Rotular alguém de “comunista” como se fosse um defeito, sem conhecer o que é comunismo, vem sendo construído fortemente no país desde as eleições de 1989. Aqui não temos espaço para detalhamento, mas ler os estudos sobre os discursos eleitorais pode ajudar a aclarar a questão.

Retomando ao clima atual, o fato de estarmos em uma pandemia e os dois países, Brasil e Estados Unidos serem os mais fracassados no combate para salvar a vida de seus cidadãos, infere que as questões emocionais estão perpassando os grupos ideológicos indistintamente. Em uma dicotomia simplista (que sou desfavorável, mas por questão de espaço não há como explicar algo complexo) entre esquerda/direita, se antes a esquerda tinha a seu favor o fato de que os governos direitistas incentivavam aglomeração, especialmente no Brasil com a participação do próprio presidente nos atos populares, agora já não pode mais usar esse argumento. Desde o início da pandemia, os grupos progressistas criticam os governos conservadores por sua prioridade em salvar a economia, não vidas e o quanto líderes como Trump e Bolsonaro desrespeitam as orientações das autoridades sanitárias, especialmente a Organização Mundial de Saúde.

Bolsonato contraria recomendação de manter distanciamento social para evitar a disseminação do coronavírus. Crédito da foto: Carolina Antunes/Presiência,

Ao apoiar manifestações de rua, gerando aglomerações, propícias para o crescimento do contágio do coronavírus, estes grupos não estariam gerando um paradoxo? Convocar protestos logo após Trump romper com a OMS parece um alinhamento com a falta de cuidado sanitário, ainda que por motivos totalmente distintos. Em uma linha de teoria da conspiração, quem pode afirmar que tudo isso não foi manipulado para que os grupos se inflassem emocionalmente, fossem às ruas e os governos não levassem mais a culpa sozinhos sobre o combate – ou não combate – da Covid-19? Temos o escândalo Cambrige Analytica e o uso de dados digitais para mostrar que todas as possibilidades são possíveis. 

Tanto aqui, como nos Estados Unidos, onde nos últimos dias se registram manifestações presenciais crescentes contra o racismo, vemos pessoas com e sem máscaras, aglomeradas enfrentando além dos ataques policiais o risco ainda maior da contaminação de um vírus que se conhece pouco, é letal e ainda não tem vacina. Com aglomeração, não interessa qual a causa, o vírus vai parar? Ele escolhe em qual grupo político estará presente? Ele escolhe lado? É um risco neste momento em termos de saúde pública e além da potencial provocação política para alimentar clima para mais confrontos violentos. A extrema direita está provocando e a esquerda está caindo na provocação. A chance de reverter contra os grupos que defendem a paz e os direitos humanos é grande, vide as milícias e os aparatos do Estado que estão em ação.

Temos uma Pandemia. É fato. Não estamos em um momento “qualquer” da humanidade e em nosso país, assim como nos Estados Unidos, os números de mortes só crescem. Aqui também é notório que os casos são subnotificados por uma questão de estrutura. Não há gestão governamental eficiente. O que existe é o apoio à economia vertical patriarcal e o apelo à volta a uma normalidade que não existe. 

Os países que estão conseguindo combater a doença foram os que adotaram, além do isolamento obrigatório, políticas públicas eficientes em âmbitos diversificados. No Brasil, hoje, ver dois grupos políticos antagônicos incentivarem ida às ruas em meio ao número crescente de óbitos por Covid os aproxima. As emoções de ambos estão guiando. Ambos parecem se unir aos que não ouvem as recomendações de cientistas e profissionais da saúde que defendem há meses que não deve haver multidão e que para salvar vidas devemos ficar em casa.

O Brasil chegou a mais de 35 mil mortes por Covid-19 na sexta (5 de junho). Crédito da foto: Amazônia Real

A ideologia dominante já mostrou pela propaganda reforçada desde 1989 que qualquer manifestação popular será desacreditada. Nas redes sociais digitais ou nos meios de comunicação lemos notas nas quais o vandalismo (praticado por participantes ou infiltrados) será usado contra grupo de jovens que lideram os protestos. Isso, novamente, tem a ver com o patriarcado: o grupo dominante de homens brancos, ricos e engravatados com seus grupos poderosos aliados usarão suas armas de propaganda para manipular mais e mais a população contra quem os contesta. E para eles é interessante que este grupo vá às ruas, pois assim podem usar como argumento no caso da Covid-19 para retomar comércio, aulas e a suposta “normalidade”, assim como para justificar as mortes que não conseguem evitar. Se tornaria em uma fala como: “o vírus não pega na manifestação, mas pega no ônibus pra ir trabalhar”, o que em uma linguagem pejorativa da direita, justificaria desqualificar o manifestante de “vagabundo”.

Em momento algum minimizo da luta contra o racismo ou a necessidade de expor as injustiças sociais para combater as desigualdades. Vidas negras importam. E sou uma ativista pelos direitos humanos. Desde jovem vou às ruas pelas causas que defendo, mas agora a saúde pública é prioridade. Sou cientista, por isso, sou a favor do isolamento e vou seguir o que os colegas pesquisadores da área de saúde recomendam. Elas e eles sabem o que estão falando. Há outras formas de ativismo, mais seguras em tempos de calamidade sanitária, como gerar visibilidade aos movimentos negros, assinar petições, questionar a falta de presença de pessoas negras nas escolas, universidades, cargos diretivos na vida pública e privada, prestigiar agora e sempre autores, artistas, comerciantes, amigas e amigos negros, observar o próprio vocabulário para não repetir discursos racistas, votar nas pessoas que representem seu modo de ver e não ser um agente da pandemia. Sair agora em multidão é colaborar com a tese de que o uso de máscara e de álcool gel é suficiente. É hora de ações racionais, não guiadas pelas emoções.

Encerro: como cobrar do governo federal que não se retorne ao trabalho presencial de forma insegura, que os municípios tomem cuidados em transportes públicos, que não haja a abertura de comércio, se os grupos de vários matizes estão incentivando aglomerações? Ainda que haja distribuição de máscaras e álcool gel em manifestações, como garantir o distanciamento necessário? Como afiançar que o vírus não se alojou nos lugares onde as pessoas estarão protestando, tocarão e estarão expostas? Como verificar a intenção dos participantes, se não há infiltrados justamente para provocar o vandalismo e a desmoralização dos movimentos democráticos?

Espero que minhas palavras colaborem para a percepção das contradições que se formaram no tabuleiro e como as emoções influenciaram, fazendo com que semelhanças entre grupos ideológicos distintos apareçam bem mais fortemente em uma análise fria. Ambos estão emocionalmente abalados, ambos defendem arduamente seus pontos de vista, ambos saem às ruas com ou sem máscaras, ambos se consideram corretos, ambos querem ser ouvidos, ambos querem justiça, ambos gritam palavras de ordem, ambos podem se contaminar e ambos podem ampliar a contaminação.

Afinal, qual é o objetivo dos grupos aparentemente antagônicos?

Manter o ultraconservadorismo e o governo Bolsonaro à custa de quantas vidas? Combater o racismo e tirar Bolsonaro à custa de quantas vidas?

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