As veias ainda estão abertas

A América Latina não é um continente fácil, e olhar um pouco para trás pode nos ajudar a entender melhor nosso conturbado presente

Na semana seguinte ao início das manifestações gigantescas que paralisaram o Chile e colocaram em xeque as tão propaladas conquistas neoliberais do país andino, Argentina e Uruguai foram às urnas para escolher seus futuros governos. Os resultados foram distintos: na Argentina, o candidato peronista Alberto Fernández, de centro-esquerda, venceu o também neoliberal Maurício Macri já no primeiro turno.

No Uruguai, nem mesmo a mobilização das últimas semanas e o comparecimento em massa às urnas de eleitores progressistas, impediram um resultado que, mesmo simbolicamente, já representa uma perda significativa para a Frente Amplio, do governista Daniel Martínez, que disputará o segundo turno com uma coalizão direitista liderada por Luis Lacalle Pou, do Partido Nacional, depois de mais de um década à frente do governo.

Embora as circunstâncias sejam distintas, chama a atenção que, nas ruas e urnas, nossos vizinhos estejam a sinalizar, além do descontentamento, o esgotamento dos modelos governamentais dos últimos anos. Um desgaste mais visível no Chile e na Argentina onde, respectivamente, as políticas neoliberais adotadas durante a sangrenta ditadura de Augusto Pinochet, e como resposta à crise institucional, com repercussões também na economia, durante o último governo de Cristina Kirchner, produziram inúmeras e perversas desigualdades.

Mas mesmo no Uruguai, onde a desigualdade é significativamente menor se comparada aos países vizinhos, além dos bons índices de crescimento econômico e da estabilidade política, há motivos para descontentamento. Os uruguaios reclamam de uma educação que, embora de qualidade, carece de inovação; das altas taxas de suicídio; dos serviços públicos de saúde e assistência social deficitários e, notadamente na última década, do aumento dos índices de criminalidade.

Em nenhum dos três países é possível avaliar e medir, com segurança, os resultados futuros dos acontecimentos recentes. Não apenas porque a insatisfação apareceu de maneiras distintas, mas porque as condições específicas e as particularidades de cada país e de seus governos, produzirão respostas igualmente diversas. Minha proposta nesse artigo é a de um exercício que tenta ler as crises coevas em uma chave que busca estender e ampliar o presente, não para que o passado o “ilumine”, mas para que, ampliado, ele surja um pouco mais complexo.

Contra a história

A América Latina não é um continente fácil, e olhar um pouco para trás pode nos ajudar a entender melhor nosso conturbado presente. Em um livro fundamental, “La oscuridad y las luces”, o sociólogo argentino Eduardo Grüner nos lembra que as Américas foram forjadas no trabalho escravo, de nativos e africanos, estes trazidos para cá como parte de um milionário empreendimento capitalista. Além de contribuir para o enriquecimento do chamado Velho Mundo, ele lançou as bases de um continente fundado não apenas na desigualdade, mas na violência em suas diferentes formas e manifestações.

E não se trata de um projeto limitado, sabemos, ao período colonial. A barbárie da escravidão, uma das responsáveis pelo genocídio (e, em larga medida, também o etnocídio) de índios e negros ao longo de pelo menos quatro séculos, se estendeu e permaneceu instituição fundamental nos processos de independência, perdurando até as décadas finais do século dezenove. A sua naturalização, de acordo ainda com Grüner, operou o que ele define como “uma anestesia da consciência e das palavras”, que obliterou principalmente o fato de que somos, hoje, descendentes de um horror ainda não inteiramente passado.

Nossa modernidade, portanto, não é apenas tardia ou periférica, mas atravessada pela herança da lógica escravista que informou e formou parte significativa de nossas instituições e sensibilidades políticas. O racismo e a discriminação de gênero; as altas taxas de encarceramento; os índices abissais de desigualdade social; a repressão estatal aos movimentos e mobilizações sociais, mas também as políticas de conciliação que reproduzem e legitimam a distribuição assimétrica de privilégios e indigências, disfarçando-as e amenizando seus efeitos perversos, em certa medida ressignificam e atualizam nossa crueldade passada ainda presente e incomodamente familiar.

Insisto: é claro que nosso passado histórico não explica tudo. Há as especificidades, as diferentes maneiras como cada país e sociedade lidou e lida com suas memórias – e seria preciso um outro artigo para pensar, por exemplo, da Venezuela e da Bolívia, onde os processos políticos recentes mobilizam outros afetos e demandas, distintos das nações vizinhas. Mas não se trata, no caso das manifestações recentes, apenas da resistência às mazelas produzidas por anos de política neoliberal, ao menos não se as inserirmos em durações mais longas.

Assistimos, nos últimos dias, ao enfrentamento às formas de configuração dos Estados nacionais latino-americanos, que incorporaram e deram continuidade ao horror, fazendo da política a continuação da barbárie por outros meios. Em que pese as diferenças e singularidades próprias a cada contexto, quando principalmente as ruas são tomadas por multidões, como no Chile em 2019 – e no Brasil em 2013 –, que não visam o poder, talvez nem mesmo a vitória, estamos a falar também de uma luta contra a história.

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