As consequências do “speed watching” para o cérebro

A tecnologia nos permite assistir mais rápido aos conteúdos para que se "aproveite" mais o tempo, Mas isso tem consequências

Uma rápida olhada no mercado de streaming confirma a existência de um volume monumental de séries, documentários e filmes, particularmente nos últimos anos. Vejamos alguns dados. Segundo a FX Network Research, em 2013, ano da explosão dos serviços de streaming, o mercado norte-americano disponibilizou 349 novas séries, distribuídas pela televisão aberta, canais a cabo e serviços online. Esse número atingiu seu pico em 2019 com 532 lançamentos. Foi um aumento de 35% que poderia ter sido ainda maior se fossem computados outros programas como reality shows, novelas ou séries infantis.

Entretanto, em 2020, observou-se uma queda de 7% (493 títulos), em relação ao ano anterior, possivelmente, um reflexo da pandemia sobre os estúdios. Mesmo com essa pequena redução, ainda estamos diante de um número assombroso de milhares de horas de entretenimento diante de uma tela.

Outro tipo de conteúdo que, aparentemente, tem crescido muito em oferta no Brasil, embora ainda não se disponha de uma compilação robusta de dados a respeito, é o formato de podcast. Portanto, cada vez mais há a possibilidade de se acessar “infinitos” conteúdos, ao alcance de poucos toques, caracterizando o que pode ser, até então, uma das maiores vocações culturais do século XXI, o entretenimento.

Este parece ser um ambiente que favorece, para além da distração, uma potencial usina de sintomas de ansiedade e dependência, ancoradas a produtos com tramas envolventes e que, muitas vezes, se desenrolam em longínquas temporadas. Quantas vezes nos deparamos frente a dificuldades em escolher algo para assistir diante da enorme variedade de títulos disponíveis? Compara-se a um leitor voraz que entra numa biblioteca farta de livros escritos pelos melhores autores. Qual escolher primeiro? A opção de outrora, e ainda vendida atualmente, era a da leitura dinâmica. Ou seja, leia mais rápido um livro para ler mais livros.

O que a tecnologia nos oferece agora é assistir mais rápido aos conteúdos para que se “aproveite” mais o tempo disponível, garantindo que se consuma mais e mais conteúdo por unidade de tempo. Mas quais são as consequências dessa aceleração, também conhecida como “speed watching”, para o cérebro e sua plasticidade?  

Primeiro, vamos discutir um pouco sobre este conceito tão fluido e controverso. A plasticidade cerebral é um tema tradicional dentro da neurociência pois remonta o início da “doutrina neuronal”, proposta originalmente pelo neurocientista espanhol Santiago Ramon y Cajal, definindo assim o neurônio como a unidade anatômica, fisiológica, genética e metabólica do sistema nervoso (Ramon y Cajal, 1904).

Mas antes mesmo do estabelecimento da primazia do neurônio como peça central para a estruturação e funcionamento do cérebro, Cajal já chamava a atenção para as conexões formadas entre eles, chamando-as inicialmente de “junções” e que, em 1897, foram cunhadas por Foster e Sherrington como sendo as sinapses. Portanto, a plasticidade sináptica poderia ser traduzida como a capacidade de se modificar uma estrutura sináptica, previamente existente, potencialmente alterando ou modulando o seu funcionamento.

Mas quais fatores ambientais, sociais ou comportamentais poderiam ser esses? Esta pergunta começou a ser respondida ao longo do século XX, inicialmente por um psicólogo canadense chamado Donald O. Hebb, que em 1949, postulou que modificações nas sinapses poderiam corresponder ao substrato necessário para a ocorrência de aprendizado. Tais princípios são, até os dias de hoje, de enorme comprovação experimental, tornando-se balizadores para projetos de enorme relevância para o entendimento do funcionamento do cérebro humano.

Partindo do que sabemos hoje podemos afirmar que, a grosso modo, as sinapses podem ser classificadas como sendo “estruturais” ou “funcionais”. As primeiras se comportam como verdadeiras vigas de sustentação de um arcabouço cerebral cujo funcionamento mais elementar depende imensamente delas. Ao passo que as sinapses “funcionais” possuem amplas características que favorecem a ocorrência de modificações em suas estruturas e funcionamento, portanto, são consideradas mais plásticas que as primeiras.

Embora ainda não tenhamos estudos conclusivos a respeito de como o hábito de assistir a conteúdos em velocidades mais elevadas modificariam nossas sinapses, é possível supor que as sinapses “funcionais” sejam as primeiras a serem moduladas diante deste novo contexto de exposição sensorial e atencional. Os mecanismos pelos quais o cérebro responde a este novo ambiente acelerado continuam sendo os mesmos que sempre existiram, muito embora, recrutados de uma maneira jamais vista anteriormente.

O resultado disso pode ser uma modulação inédita nas redes neurais que, coletivamente, poderiam, talvez, dar origem a cérebros mais eficientes e rápidos. Mas também, poderíamos concluir que estes mesmos cérebros “acelerados” demandariam mais energia para se manterem funcionando a esse ritmo, assim como poderia haver uma habituação a tamanha voracidade sensorial e cognitivo, o que, potencialmente, originariam importantes quadros de ansiedade, insônia, distúrbios de atenção e depressão. 

Um estudo realizado no Istituto Italiano di Tecnologia, realizado com 100 voluntários (homens e mulheres com média de 22 anos de idade), mostrou que mudanças de velocidade de até 12% (para mais ou para menos em relação a velocidade normal de 1x) em um vídeo de 10 minutos de uma partida de futebol, não foram percebidas pelos voluntários. Mesmo quando se modificou em 18% a velocidade do vídeo (sem alterar o áudio), viu-se que apenas uma parcela pequena de indivíduos foi capaz de notar a diferença.

Apenas quando os voluntários foram solicitados a prestarem muita atenção ao conteúdo do vídeo, constatou-se que essa capacidade de detecção de mudanças aumentou em 9% (Sperati and Bovy, 2017, Scientific Reports 7: 15379, doi:10.1038/s41598-017-15619-8). Os autores concluíram que, ao serem desafiados, os sentidos humanos tendem a se adaptar a um senso de realidade até um determinado limite, que ainda carece ser mais bem definido. Talvez, possamos conceber que, como as gerações Y e Z possuem uma maior e mais constante exposição a jogos e mídias eletrônicas, elas potencialmente deslocariam um pouco mais adiante esse limite, moldando suas redes neurais de uma maneira nunca vista até então. Mas como os autores mesmo sugerem, há restrições para isso.

Em outro estudo, pesquisadores das universidades de Stanford e Kentucky, nos Estados Unidos, demonstraram, em estudantes de medicina, haver uma importante piora no desempenho acadêmico em um teste realizado sobre o assunto versado numa videoaula que foi exibida em velocidade de 1,5x (Song et al., 2018, West J Emerg Med., 19(1): 101–105, doi: 10.5811/westjem.2017.10.36027). Talvez seja possível concluir que o desempenho cognitivo, melhor ou pior, advindo de uma exposição a filmes em velocidade aumentada depende, consideravelmente, do tipo de informação que foi apresentada durante aquela exposição.

Ou seja, assistir a um filme em velocidade aumentada, apenas por diversão, recrutaria o cérebro de uma maneira em que os padrões da trama são mais claramente compreendidos (até pela previsibilidade da maioria dos enredos) do que quando o filme aborda um tema absolutamente novo e complexo, como no caso de uma videoaula. O resultado disso poderia ser facilmente aferido pelo que se produziu de memórias e compreensão reflexiva oriundas desses diferentes conteúdos. Portanto, nossa capacidade intelectiva, em constante evolução, parece refletir o quão lapidado está o conjunto de nossas redes neurais.

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