Adotei uma bebê doada na maternidade. O que isso significa?

Abrir mão de uma criança não é um ato impensado nem impulsivo. E é frequentemente a melhor decisão para o bem-estar da criança

Foi numa tarde de maio que conheci minha filha na sala de um abrigo em Curitiba. Ela tinha seis meses, mas o tamanho e o desenvolvimento de um bebê recém-nascido, resultado de um parto prematuro na vigésima sexta semana de gestação. Seis meses antes, a mãe biológica abriu mão do poder familiar sobre ela na maternidade, logo após o parto. A única razão para a demora de seis meses entre o nascimento dela e o nosso encontro foi o fato de sermos quarto colocados na lista de casais aptos a adotá-la.

Quando recebemos a guarda da nossa filha, passei a levá-la aos médicos que a acompanhavam por causa da prematuridade, cujas datas coincidiam as consultas de outro bebê que aguardava adoção no mesmo lar. Esse bebê, vamos chamar ele de Pedro, também nasceu prematuro, muito embora em melhores condições que a minha filha.

Mas ao contrário dela, a mãe biológica de Pedro não passou pelo processo de formalização da entrega dele na maternidade. Por isso, o processo de colocação dele num lar permanente dependia de se estabelecer legalmente a cessão do poder familiar, o que inclui a procura ativa por familiares. Enquanto a minha filha já tinha uma família, Pedro ainda permanecia num abrigo, que é um lugar limpo e organizado, com profissionais competentes, mas que não é uma família.

Para mim era visível a evolução da minha filha em contraste com a de Pedro. Um abrigo é um lugar ótimo, mas é também um lugar em que vários profissionais precisam atender várias crianças ao mesmo tempo. Bebês de abrigo não choram, porque a cada duas horas eles mamam, a cada quatro as fraldas são trocadas e há horário para tudo.

Não tenho como saber a razão pela qual a entrega de Pedro ao Estado não foi formalizada, mas não é difícil supor que mãe possa ter deixado o hospital sem ele. Isso porque é uma história que já ouvi inúmeras vezes como repórter. Mulheres em situação de vulnerabilidade (moradoras de rua, dependentes químicas, etc) são vítimas do tratamento desumano e violento em ambientes que deveriam ser de acolhimento e acabam fugindo de hospitais e abrigos.

O julgamento e a agressividade da equipe de saúde, como a que a atriz Klara Castanho relatou em sua carta, é uma violência, não há outra forma de descrever.

Quando conheci minha filha não foram poucas as pessoas que me elogiaram por “corrigir” o erro da mãe biológica. Esse sempre foi o tipo de comentário que me incomodou profundamente. Porque, na realidade, ela foi a melhor mãe possível para minha filha quando abriu mão dela na maternidade. Isso permitiu que o processo todo fosse rápido e o atendimento judicial e médico a minha filha seguisse adequadamente.

Na realidade, a legislação brasileira e o bom senso ditam que quando se trata de crianças é o bem estar delas que deve sempre ser o objetivo de todos. Crianças, em especial crianças pequenas, não podem se defender e precisam de adultos (médicos, juízes, enfermeiros, assistentes sociais etc) que intercedam por elas. Crianças também são sempre nosso voto de confiança no futuro.

Nem toda pessoa que engravida pode ou tem condições de ser mãe. Porque parir é um ato físico, mas criar uma criança é MUITO DIFÍCIL e desafiador. A quem serve esse imperativo de obrigar mulheres a serem mães? Certamente não serve o bem-estar das crianças. Talvez sirva ao desejo moralista de alguns de julgar a vida alheia. Mas não, nem sempre é no melhor interesse da criança impor a maternidade a alguém.

Por outro lado há sim casais e pessoas solteiras aptas a adotar no país. E que, como no caso de Curitiba, passam por uma triagem cuidadosa das equipes das Varas de Infância. Em certo sentido, se habilitar para adotar uma criança te prepara muito mais para a maternidade e a paternidade que passar por uma gestação. Eu sei, eu passei pelas duas experiências.

Para se habilitar a adotar a pessoa precisa discutir com a equipe de assistência social da Vara desde seu relacionamento (no caso de casais), sua estrutura familiar, sua condição de trabalho e econômica e suas expectativas em relação a criança. É óbvio que mesmo quem gesta o próprio filho viva a expectativa de não ter um filho perfeito, saudável. Mas só na adoção é parte obrigatória do processo discutir todas as possibilidades concretas.

Você aceita um filho com HIV? Espera adotar um bebê recém nascido ou considera a possibilidade de receber uma criança de 4, 8 ou 10 anos? Adotaria uma criança autista? Com Síndrome de Down? Com uma deficiência? Espera uma menina ou um menino? Branco? Negro? Indígena? Com pais com histórico de dependência química? Ou de doença mental?

Quando me ligaram para dizer que havia uma criança disponível para nós, estávamos mais do que preparados para dizer que sim. Nós já tínhamos claro que estávamos preparados, nossa família estava preparada e a gente tinha condições de receber essa criança da melhor forma possível. Mas se a nossa filha chegou até nós é porque a mãe biológica dela teve a coragem de abrir mão dela, apesar de – tenho certeza – não ter sido fácil nem ela tenha passado incólume por juízes e enfermeiros e médicos que podem muito bem ter sido pouco generosos com ela.

Talvez a mãe do Pedro não tenha tido a mesma sorte. E como consequência, quase um ano depois da nossa filha chegar em casa, ele ainda estava no abrigo sendo criado por um grupo de pessoas muito bem intencionadas, mas que não são uma família. Pedro também poderia, como outras crianças, ser submetido a situações de violência, de vulnerabilidade, à fome, ao frio e ao abandono, mesmo que a mãe o levasse para casa. Porque se alguém não se julga capaz de criar uma criança é possível que ela tenha boas razões para isso.

Não basta parir para ser mãe. Todo dia é um desafio. O próprio parto e o banho hormonal que ele representa, além das mudanças drásticas que a maternidade causa na vida de uma mulher nos colocam no limite. Para muitas mulheres, parir significa sofrer com sequelas da gestação e do parto para o resto da vida. Há casos graves de depressão pós-parto e até psicose em recém mães (o documentário acima é um excelente ponto de partida se você quiser saber mais sobre isso).

Não são poucos os casos de abandono físico, mas também abandono emocional dos pais. Muitas vezes o casal continua junto, mas a mulher se sente sozinha.

Agredir e julgar mulheres que querem abrir mão da guarda dos bebês na maternidade não serve a nenhum propósito e prejudica a criança. A violência de uma enfermeira, uma médica, uma assistente social pode fazer uma mulher levar um bebê para casa, mas não faz nada para garantir que aquela é a melhor situação para a criança.

Abrir mão da guarda de um bebê não é um ato impensado. A Justiça brasileira faz com que essa decisão seja confirmada em uma audiência judicial, além de garantir que a mulher seja acompanhada pelas assistentes sociais da Vara de Infância. O histórico e o contexto da gravidez serão devidamente levantados nesses momentos.

Ou seja, se for o caso, há tempo e espaço para ela desistir e retomar a guarda da criança (nesse caso, a Justiça irá acompanhar essa mãe para garantir o bem-estar da criança). Nada disso precisa da estupidez de alguém que julga sem informação. Mas essa estupidez pode forçar alguém que esteja desesperado a fugir, a deixar a criança para trás. É essa estupidez que estimula mulheres em situações de extrema angústia abandonarem crianças.

A despeito do momento de retrocesso que vivemos, a legislação brasileira que trata da infância e adolescência é particularmente moderna e avançada. Ela reconhece a condição especial que é essa fase da vida e a necessidade de proteção da criança e da infância. Isso, porém, não impede que essa legislação esteja sob constante ataque de quem acha que existem crianças e crianças, estas últimas, pela condição social e econômica, cidadãs de segunda classe cujos direitos podem ser colocados de lado.

É justamente esse entendimento jurídico moderno que permite que o processo de cessão do poder familiar seja feito de maneira respeitosa e objetiva e que o direito da criança a uma família que a ame, a proteja e tenha condições de criá-la seja resguardado. Mas infelizmente a lei não vale nada se as pessoas, ignorantes, continuarem a se inspirar na lei marcial da moralidade. É nosso trabalho – e é o que fez escrever esse texto – lutar contra essa ignorância e garantir que mulheres grávidas possam tomar boas decisões, inclusive a de abrir mão da criança.

Ninguém passa incólume pela experiência de engravidar, mesmo que seja uma gravidez desejada e planejada. Respeitar a vontade e o direito da mulher que engravidou não é só proteger a mãe, mas também e principalmente resguardar a criança. A decisão da mãe biológica da minha filha foi a melhor decisão para ambas, tenho certeza que é esse o caso da atriz Klara Castanho também. O que é errado é que mesmo fazendo certo essas e outras mulheres continuem sendo violadas pela moral dúbia de outros.

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11 comentários em “Adotei uma bebê doada na maternidade. O que isso significa?”

  1. NAIARA Rodrigues de melo

    Quero botar uma menina de 0 a 6 meses para mim mais o meu esposo eu já tenho três filhos homens nunca tive uma filha mulher tenho vontade de adotar uma menina

  2. Agradeço muito à mãe biológica do meu filho, que levou a gestação até o final e abriu mão do filho recém nascido dizendo “é melhor ficar com ela, pq comigo vai acabar morrendo “!. Meu filho hj tem mais de 30 anos, sempre foi muito saudável d feliz

  3. Leandro Kruszielski

    Que texto informativo, importante e envolvente! Um oásis no deserto de ódio e opiniões rasas da internet a respeito deste tema. Parabéns!

  4. Sérgio Ubiratã Alves de Freitas

    O texto é uma fotografia do que vivi por duas vezes. Minha filha e meu filho foram a me presenteados dessa maneira. Honrei a decisão da mãe e abracei a melhor das experiências de vida.

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