A vacina da UFPR é o retrato do fracasso do financiamento à ciência brasileira

O projeto está orçado em R$ 76 milhões, valor bastante pequeno para uma empreitada desta envergadura, mas no Brasil este valor corresponde a 85% de tudo o que sobrou do orçamento do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, após o corte de R$ 600 milhões

A Universidade Federal do Paraná (UFPR) lidera uma ação pioneira no Brasil que busca o desenvolvimento de uma vacina contra a Covid-19, pandemia esta que já enlutou mais de 600 mil famílias de nosso país. Mobilizando centenas de pesquisadores, dezenas de laboratórios e toda uma competência construída ao longo de muitas décadas de árdua militância na mais elevada ciência mundial, a UFPR oferece a mais visível ação de impacto social já vista em sua história, com um alcance que facilmente foge aos nossos olhos. Esta vacina baseia-se em tecnologia moderna que consiste no uso de nanosferas de um polímero biocompatível e biodegradável que é recoberto por fragmentos da proteína Spike. Tal proteína é descrita como sendo a responsável por ancorar o coronavírus às células humanas, permitindo assim a sua invasão e proliferação, gerando todas as graves consequências para a saúde das pessoas infectadas. Potencialmente, esta vacina deverá ter alta eficácia, baixo custo (entre R$ 5 e R$ 10 por dose) e elevada segurança, além de se configurar, concretamente, como uma verdadeira ação de afirmação de soberania nacional. Embora todos os estudos iniciais, conduzidos em roedores, apontarem para um grande sucesso deste empreendimento, a maior barreira enfrentada até agora não é meramente técnica, e sim financeira. O projeto da vacina UFPR está orçado em R$ 76 milhões, valor bastante pequeno para uma empreitada desta envergadura, principalmente se levarmos em conta os US$ 950 milhões investidos pelo governo norte-americano para a vacina da Pfizer. Entretanto, em nosso Brasil, este valor, de R$ 76 milhões, corresponde a incríveis 85% de tudo o que sobrou do orçamento do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), ou seja, R$ 89,8 milhões, após o draconiano corte de R$ 600 milhões (90% do orçamento do ministério) sofrido pela pasta. Lembrando que mesmo antes do corte, já estávamos diante do menor orçamento do MCTI dos últimos 10 anos.

Colocando uma lupa sobre estes R$ 89,8 milhões deixados, o MCTI prevê que R$ 63 milhões servirão à produção de radiofármacos fornecidos ao país e, apenas, R$ 19 milhões serão destinados ao desenvolvimento de pesquisas científicas, razão pela qual se justifica a existência do referido ministério. Portanto, o recurso “disponível” transforma o projeto da vacina UFPR, modesto e racional em seu orçamento, em uma empreitada faraônica, considerando este cenário de financiamento. Antes deste golpe de morte à ciência brasileira, a UFPR tinha levantado junto a fontes do MCTI, Conselho Nacional de Pesquisa e Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da própria universidade, o valor de R$ 1,3 milhão. Embora importante para o pontapé inicial, este montante corresponde a modestíssimos 1,7% do orçamento total do projeto, consequentemente, outras possíveis fontes estão sendo buscadas. Uma delas é o governo do estado do Paraná que, por enquanto, avalia a liberação de um aporte de R$ 18 milhões para a infraestrutura laboratorial. Em paralelo a isso, os pesquisadores também criaram um sistema de doações (https://vacina.ufpr.br/transparencia/), administrada pela Fundação da UFPR (FUNPAR) e que já arrecadou pouco mais de R$ 87 mil (0,11% do orçamento total).

Em particular, podemos interpretar que esta iniciativa de financiamento coletivo constitui-se numa ação inovadora e alternativa de busca de recursos, refletindo o dinamismo e empreendedorismo de nossos cientistas. Mas deixando esse senso comum quase “motivacional”, e ingênuo, de lado, a simples existência de um fundo de doações para o projeto da vacina UFPR, em meio a maior e mais devastadora pandemia do século, torna evidente uma realidade cristalizada de fracassos das políticas públicas de apoio à ciência brasileira. Este retrato se impõe de maneira não apenas financeira, e sim, embasado em um forte discurso de desacreditação e desqualificação de pesquisas e pesquisadores, traduzido num conceito já bastante disseminado de “politização da pandemia”. Esta constatação, há tempos deixou de ser uma frívola percepção e ganha novos contornos a partir do momento que informações, vindas do Distrito Federal, apontam que os cortes foram deflagrados por operadores políticos da Casa Civil, e não do Ministério da Economia, indicando, portanto, evidente motivação política, de arquitetura elaborada, para produzir o maior desmantelamento possível, caracterizando-se, portanto, como a mais bem sucedida ação de destruição da ciência brasileira. Certamente, tal medida tenha encontrado plena anuência do Ministério da Economia que busca, deseperada e atabalhoadamente, brechas fiscais para a extensão do eleitoreiro Auxílio Brasil, recentemente redimensionado.

Podemos dizer que estamos diante de um governo que, metodicamente, vira as costas para a ciência e a racionalidade, como um todo, em nome de um plano que visa a sua hegemonização, às custas do desmonte acadêmico, tecnológico e da confiabilidade que a ciência ainda possui junto a população. Entretanto, o retumbante sucesso das vacinas, na pavimentação de uma alternativa de combate à pandemia, consagra-se como o evento mais concreto e contemporâneo de uma nova relação social entre a ciência e seu povo. Cabe aos cientistas, e às suas sociedades organizadas, ampliar esse contato com a população, com o objetivo de esclarecer e divulgar a importância e os benefícios de uma ciência pujante para o país, antes que não tenhamos mais condições de produzí-la e sejamos reféns do pensamento e produção estrangeiras.

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4 comentários em “A vacina da UFPR é o retrato do fracasso do financiamento à ciência brasileira”

  1. Que oportunidade desperdiçada, jogada fora! Cientistas entusiasmados, mas sem recursos e um governo — e uma sociedade também — que menospreza sua responsabilidade.

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