A quarentena irá acabar às custas das mulheres

Os governantes estão nos forçando a optar entre ficar sem dinheiro ou se contaminar

Na semana passada o governo do Paraná decidiu não renovar as restrições a atividades não essenciais depois de quinze dias de fracasso retumbante. A decisão veio num dia de recorde de mortes e de novos casos da Covid-19, o que ajudou a ressaltar o equívoco da decisão.

Voltar atrás é o que nosso governador Ratinho Jr. (PSD) e nosso prefeito Rafael Greca (DEM) mais fazem desde março. Isso nos deixa sem um norte claro na crise, sem a perspectiva de superar com poucos danos a pandemia.

A ausência de liderança deixa a cargo de cada um decidir como melhor lidar com a situação. E como nenhum líder concretiza ações para viabilizar o isolamento, a quarentena caminha para o fim.

Explico: as pessoas e as empresas, especialmente as de menor porte, estão ficando sem dinheiro. A pressão financeira ajuda as pessoas a racionalizarem uma decisão aparentemente ruim: a de se expor à contaminação.

Claro, posso dizer que esta decisão é ruim aqui, do alto do meu privilégio de poder trabalhar em casa, de ter ainda renda, de poder pedir quase tudo por delivery e de quem tem uma casa confortável e segura.

Uma parte significativa da população, no entanto, não tem as mesmas condições. Gente como minha vizinha, cuja família depende do pequeno salão de beleza aqui da vila. Ela, o marido e o filho adulto (que recém virou pai) ganham a vida ali.

Nos primeiros vinte dias da quarentena, as portas do salão ficaram fechadas. Mas depois disso, a vizinha passou a divulgar pelo WhatApp que está agendando atendimentos “com todo cuidado” durante a pandemia. Mais do que isso, tem feito promoções e divulgado novidades.

A vizinha, percebo, tem dois problemas. Um concreto: a necessidade de renda para se manter, para pagar o aluguel do salão e manter o ponto onde ela tem sua clientela construída com anos de trabalho. E um abstrato: a possibilidade de contrair uma doença. Ela optou por arriscar resolver o primeiro e pagar para ver se terá que lidar com o segundo.

Pessoas como ela vão, cada vez mais, insistir para voltar “à normalidade”, seja com a concordância das autoridades, seja sem. Elas precisam voltar a essa normalidade porque estão diante de problemas sérios e concretos: o medo de perder a casa, de passar fome, de não ter dinheiro, de perder o que conquistaram com o trabalho de uma vida inteira.

Só que não existe normalidade. E muito embora nossos líderes insistam em não liderar, a caravana passa e a situação se agrava. O que impede que ela esteja já insustentável é o 40% da população que pode e está em isolamento.

Não sabemos quem são, mas eu arriscaria que são professores, enfurnados em casa no inferno particular de transformar o que era presencial em aula à distância, são profissionais liberais de áreas que migraram fácil para o home office. Essas pessoas continuarão em casa, segurando o avanço da doença de alguma forma.

Mas milhares de outras vão continuar a circular pela cidade, defendendo sua sobrevivência e colocam elas mesmas e seus familiares em risco. É uma decisão idiota? Não, faz todo o sentido.

Talvez, de alguma forma essa estratégia “dê certo”. Ou seja, a pandemia, em algum momento, vai passar. E muitos de nós vamos sobreviver.

Mas qual o preço disso?

Será alto demais. Não só porque abrir leitos e mais leitos de UTI é um jeito caríssimo de lidar com uma doença quando alternativas muito mais baratas (como ficar em casa) seriam mais eficientes (porque daí as pessoas NÃO ficariam doentes, não morreriam).

Sairá caro para os profissionais de saúde. Muitos vão adoecer, alguns vão morrer. Milhares vão conviver anos com sequelas físicas e psicológicas de assistir pessoas morrendo sem poder fazer nada.

Está sendo absurdamente caro para os professores, para pequenos empresários que estão falindo, para muita gente que perdeu e vai perder o emprego.

Mas será particularmente custoso para as mulheres. Porque as escolas não vão reabrir. Ou se reabrirem, não terão alunos. E quem vai continuar a acumular mil funções serão as mulheres.

Caberá a nós continuar a manter a higiene e organização da casa, da família, dos animais de estimação. Somos nós que vamos continuar a planejar (e a fazer em muitos casos) a alimentação doméstica. Dar conta do estudo das crianças. Das brincadeiras. Da vida, enfim.

E não teremos como abrir mão de trabalhar, muitas vezes em tempo integral e sob a pressão de se comportar como se não houvesse dificuldade em fazer reunião ou desempenhar tarefas profissionais com crianças em volta.

Não é absurdo prever que, nessa situação, mais mulheres perderão seus empregos, terão redução de salário ou mesmo deixarão de ser promovidas sob a desculpa de estarem “menos produtivas” nessa situação sui generis em que estamos.

Também não é arriscado supor que muitas vão adoecer, cansar, surtar ou talvez tudo isso junto. É um fardo pesado para um grupo que já carrega bastante coisa nas costas.

O problema é que boa parte desse “custo” é invisível. E nossos (des)governantes apostam, com certa chance de sucesso, que ele jamais será visto. A pandemia vai acabar e isso será esquecido.

Os 5 mil, 50 mil, 100 mil mortos não parecerão tão absurdos assim. Porque afinal, somos o povo do pensamento positivo, de ver o lado bom da vida, enquanto deixamos lá no fundo, escondido, nossas dores pessoais.

A minha esperança é que, de repente, nós mulheres possamos, dessa vez, não deixar que nossas dores e nossos mortos sejam esquecidos, nem o crime dos que se omitiram durante a pandemia.

Sobre o/a autor/a

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

O Plural se reserva o direito de não publicar comentários de baixo calão, que agridam a honra das pessoas ou que não respeitem níveis mínimos de civilidade. Os comentários são moderados por pessoas e não são publicados imediatamente.

Rolar para cima