Incerteza e isolamento: como a pandemia derruba nossa saúde mental

Alexandre Sech, doutor em saúde, fala sobre os riscos que corremos

Você já deve ter pensado que não aguenta mais a pandemia. Que não aguenta mais o isolamento. Que as notícias sobre o coronavírus te fazem mal. Que se a vida normal não voltar em breve você vai enlouquecer. Bom, você não está sozinho.

Estudioso das relações entre saúde e espiritualidade, o doutor em Saúde Alexandre Sech, que trabalha com a obra de William James, diz que todos esses sentimentos são comuns e podem ser explicados pela mente humana. Diz ainda que é importante ficar atento aos sintomas para saber o que fazer: não dá para descuidar, o preço pode ser alto.

Veja a entrevista concedida por ele ao Plural.

Quais são os sintomas a que as pessoas devem ficar mais atentas em relação à saúde mental na pandemia?     

Os sintomas podem ser muitos e variam de pessoa para pessoa, bem como podem caracterizar diferentes quadros de alteração da mente: os chamados transtornos mentais ou distúrbios psíquicos. Esses são os principais e os mais comuns que podem indicar alguns dos que são comumente identificados na pandemia: Transtorno de Ansiedade, Síndrome do Pânico e Depressão.

  • Sentimentos de tristeza e necessidade de isolamento constantes;
  • Preocupação ou medo constantes ou excessivos;
  • Pensamentos intrusivos, repetitivos, incômodos e confusos e/ou problemas de concentração e aprendizagem;
  • Mudanças extremas de humor, incluindo sensações de euforia;
  • Irritabilidade ou raiva prolongadas;
  • Dificuldade em compreender ou relacionar-se com outras pessoas;
  • Alterações no sono (dormir demais ou de menos) ou sensação de cansaço e pouca energia constantes;
  • Alterações nos hábitos alimentares e/ou no apetite (aumento da fome ou falta de apetite);
  • Diminuição ou perda da libido;
  • Uso excessivo de substâncias como álcool ou drogas;
  • Pensamentos de morte ou de suicídio;
  • E alguns sintomas físicos regulares como falta de ar, batimentos cardíacos acelerados, dores de cabeça, dores de estômago e desconfortos físicos sem causa aparente.

É importante saber que esses sintomas, e não precisam ser todos, podem ser indicativos dos transtornos que citamos, mas podem também estar associados a outras enfermidades. Por isso, é preciso reforçar que diagnósticos na área da saúde mental devem ser sempre feitos por profissionais especializados.

Por que o isolamento nos faz tanto mal?

Porque o isolamento, em um primeiro momento, se opõe a características tipicamente humanas. Como espécie, somos naturalmente gregários, sociais e afetivos. Embora essas características não sejam compartimentalizadas, podemos dizer que somos gregários porque estar com um grupo nos torna mais fortes e capazes de lidar com situações difíceis. Somos sociais porque nos inserimos em uma dinâmica de interações que organiza o grupo e nos permite localizar nossa função em sua estrutura. E, finalmente, afetivos porque é no compartilhamento ou não de emoções que os grupos se definem. Assim, os grupos aos quais pertencemos desde a nossa infância criam oportunidades cruciais para o processo de estruturação de nossas identidades, tanto individuais quanto grupais e sociais.

Assim, o isolamento físico, por si só, pode gerar respostas de estresse no nosso corpo, uma vez que o cérebro pode entender esse isolamento como uma situação de perigo e ameaça potenciais. Alguns dos sintomas já citados anteriormente podem ser ativados automaticamente por estruturas do cérebro humano responsáveis pela reação conhecida como de luta ou fuga. Essas reações, por mais desagradáveis que possam ser, são em boa parte responsáveis pela sobrevivência de nossa espécie até os dias de hoje. No entanto, a alta frequência e intensidade desse tipo de reação podem causar danos à nossa saúde mental.

Somado ao isolamento físico, o isolamento social pode trazer outros prejuízos também à nossa saúde como um todo, por nos privar, em princípio, da experiência de pertencimento aos grupos. A sensação de desconexão, principalmente, quando associada a emoções negativas decorrentes dela como a solidão, pode levar à incidência de diferentes tipos de problemas, incluindo obesidade e problemas cardiovasculares, bem como a um maior risco de ocorrência de transtorno de ansiedade, síndrome do pânico e depressão além de um declínio cognitivo e até demência.  

Diferenciei aqui o isolamento físico do social por considerar que as tecnologias de comunicação e as redes sociais, muito embora não solucionem o distanciamento físico, podem em alguma medida aproximar as pessoas permitindo interações sociais que suavizem os seus efeitos.

O que tem pesado mais para que as pessoas se sintam mal: o medo da doença, a solidão, a economia?

Acredito que devamos considerar o contexto como um todo, mesmo porque para cada pessoa os pesos de cada componente desse evento singular e complexo são sentidos de maneiras diferentes. No entanto, gostaria de apontar para outra direção que talvez ajude a entender o mal-estar que estamos sentindo. Chamo a atenção para aspectos da percepção das pessoas acerca dessa crise global e que são determinantes para a saúde mental: a imprevisibilidade e a incerteza.

A pandemia representa um cenário extenuante e altamente imprevisível. E para o cérebro humano a imprevisibilidade, que é a geradora da incerteza acerca de algo, é pior do que as consequências negativas previsíveis. Por exemplo: estar incerto sobre o seu emprego é mais danoso à sua saúde do que perder o emprego ou até mesmo pior do que saber que irá perdê-lo. Mas por quê? Porque para o cérebro a incerteza equivale a um perigo que ele não sabe ao certo qual é, e por isso não será capaz de livrar você dele. Lembra da reação de luta ou fuga diante de um perigo? Nesse caso ela é potencializada elevando consideravelmente os níveis de estresse. Essas condições alteram o bom funcionamento de nossas redes neurais e afetam um sistema chave para a preservação da saúde mental, a atenção. Quanto mais soubermos sobre os seus mecanismos, mais estaremos aptos a passar por situações incertas e imprevisíveis como essa.

O cérebro é um órgão que pode simular todos os tipos de cenários e previsões imaginários, e isso de forma vívida. Essas simulações podem ser tão convincentes que podem levar seu sistema de atenção a recalibrar redes neuronais ao ponto de se ter a certeza de que aquilo realmente está acontecendo. Isso significa que muitas vezes o cérebro filtra ou ignora o que realmente está acontecendo bem na sua frente.

Podemos dizer que a atenção cria a realidade de cada um por ser como uma lanterna que ao mesmo tempo que ilumina aquilo a que ele é direcionado, exclui o resto do seu foco. Portanto, ele nos permite selecionar os recursos de nosso cérebro e suas percepções, determina a experiência momento a momento da sua vida – o que você percebe, sente, lembra, pensa e faz definem a sua realidade. Ele é essencial para lidarmos com as situações que nos são impostas não apenas em níveis de racionalidade, mas também na forma como sentimos o que está acontecendo.

Tudo isso pode ser usado tanto para construir a plenitude quanto a instabilidade de nossa experiência emocional. Desse modo, o sistema de atenção está ligado às emoções e é essencial para as relações interpessoais, pois ele permite que a comunicação e a conexão aconteçam. Vale lembrar que prestar atenção é uma das maneiras mais convincentes pelas quais podemos mostrar nosso interesse, cuidado e amor pelos outros.

O contexto da pandemia no qual estamos inseridos, gera altos níveis de incerteza, o que faz com que simulemos muito mais do que o normal. Imaginamos constantemente resultados possíveis para perguntas que não tem respostas. Perguntas que começam com “E se…” e “Será que…” fazem com que nossa atenção nos direcione a situações catastróficas simuladas por nossa própria mente. E pior ainda, corremos o risco de deixar de perceber que as simulações são criações mentais e não a realidade, que são pensamentos e não fatos.

Essa hiperatividade neuronal contínua nos expõe a longos períodos de estresse que desgastam e degradam nossa atenção. Quando o seu foco está voltado para pensamentos trágicos ou imagens angustiantes, os recursos cognitivos do cérebro necessários para a regulação eficiente das emoções podem se esgotar e levar a pessoa à instabilidade emocional e a transtornos de ordem psíquica. Mais do que isso, podemos viver em estados de luta ou fuga constantes que somados a longos períodos de isolamento físico e social poderão nos tornar incapazes de manter as novas regras de preservação da vida como prioritárias para a superação dessa crise sanitária.

Corremos o risco de sermos levados pela nossa atenção já desgastada a fazer o que é confortável e familiar, como nos encontrar, abraçar e beijar pessoas ou mesmo nos aglomerar para recuperar o senso de pertencimento e a própria identidade. Lembre que a saúde mental equilibrada é o que garante que sua atenção mantenha no seu foco, de forma clara, as novas regras de preservação da vida para si mesmo e para os outros com sucesso.

Quais são os caminhos possíveis para se manter em equilíbrio?

Por mais óbvio que possa parecer, o equilíbrio, seja ele mental, emocional, comportamental, físico ou social decorre de escolhas que sejam também equilibradas, começando pela estruturação de uma visão de mundo em pandemia que não seja nem pessimista, nem otimista. Evitaremos assim, por um lado, escolhas extremas apoiadas em visões catastróficas ou apocalípticas e pelo outro escolhas descuidadas e irresponsáveis sustentadas por um negacionismo no mínimo ingênuo. Parafraseando Carl G. Jung, que busquemos uma imagem de mundo que nos oriente à adaptação de nós mesmos à realidade. Aqui vão algumas dicas:

  1. Entender a realidade da crise pandêmica a partir de fontes seguras de informação. Entendê-la tanto na sua totalidade quanto nas suas particularidades, evitando informações especulativas que visam o consumo de mais especulações. Observar os informativos regularmente com o objetivo de revisar suas ações em relação ao vírus e seu possível contágio. O meu isolamento social está sendo suficiente para preservar minha saúde e a dos outros? Tenho evitado aglomerações e usado a máscara adequadamente em locais públicos? Como estão meus cuidados de higiene com o uso de água, sabão e o álcool? É importante dizer que rever comportamentos reforça a importância para o cérebro e sua repetição de forma consistente cria o hábito. Em outras palavras, automatiza esses padrões de comportamento de forma eficiente e não desgastante.  
  •  Seguindo a orientação de Epíteto, filósofo estoico é hora de identificar e separar as coisas para que possamos afirmar claramente para nós mesmos quais são as coisas externas que não estão sob meu controle e quais têm a ver com as escolhas que eu realmente controlo. Onde então procuro o equilíbrio? Não nas coisas externas incontroláveis, mas nas ações e pensamentos que posso controlar, lembrando que assim estarei de forma indireta também estabelecendo padrões emocionais de maior equilíbrio que preservam minha saúde.

Podemos escolher e controlar atitudes que colaborem para a promoção e manutenção de nossa saúde como um todo. Uma alimentação saudável, atividades físicas seguras, caminhadas rápidas e alongamentos. Incluo nesse conjunto também exercícios de respiração e formas de meditação, como o Mindfulness (ou atenção plena), Raja Yoga, Meditação Vipassana, Zazen ou Transcendental e até a oração estruturada ou espontânea, lembrando que estes são meios de acesso a uma dimensão essencialmente humana, a espiritualidade.

Práticas meditativas tem o potencial de nos conectar com dimensões mais amplas e sutis da realidade, mas elas quando praticadas regularmente, protegem a nossa atenção. Elas consistem basicamente em manter nossa atenção no momento presente sem julgamento, elaboração ou reatividade. Assim, ela se torna uma espécie de “armadura mental” contra alguns dos hábitos mentais mais prejudiciais à nossa saúde mental: a divagação mental, pensamentos ruminativos e a catastrofização, que aumentam significativamente nos tempos que vivemos agora. Essas práticas ajudam a restaurar a atenção para que possamos regular nossas emoções e nos relacionar com elas de maneira diferente, permitindo que surjam e em seguida desapareçam. A prática nos treina para manter nossa atenção no momento presente e aumenta nossa capacidade de manter a consciência do que está acontecendo na mente para que não sejamos tão facilmente sequestrados ou enganados para acreditar que nossos pensamentos são a realidade.

O Sr. fala em espiritualidade. Isso significa necessariamente aderir a uma religião organizada?

A pergunta é bastante oportuna porque é comum as pessoas utilizarem esses termos como sinônimos e, portanto, intercambiáveis. Eles não significam a mesma coisa, muito embora exista uma área de sobreposição entre essas duas experiências, o que as torna, às vezes, difíceis de serem distinguidas. Outro fato relevante é que há uma grande quantidade de estudos científicos que apontam para relações tanto positivas quanto negativas entre a espiritualidade e/ou a religiosidade e a saúde física e mental. Isso demonstra que a espiritualidade e a religiosidade não apenas pertencem à experiência humana, mas que podem ser relevantes para o equilíbrio da pessoa. Se considerarmos o ser humano como um todo sistêmico podemos entendê-lo em dimensões biológica, psicológica, sociológica, cultural e espiritual.

Podemos definir a religião de uma forma bem simplista, como um conjunto ou sistema solidário de crenças, atitudes estruturadas por códigos morais e práticas de busca pela compreensão do sagrado, práticas essas que podem acontecer tanto no âmbito individual quanto no coletivo. Já a espiritualidade é um conceito amplo e pode ser definida como a dimensão de uma experiência de conexão com algo maior do que nós, normalmente envolvendo uma busca por um significado na vida e que nos faz viver o cotidiano de maneira sagrada. A espiritualidade não precisa estar ligada necessariamente a uma religião, pois ela tanto as precede quanto as ultrapassa. Assim podemos buscar a conexão com o transcendente através de outras experiências como a meditação, as artes ou o contacto com a natureza

Quais os riscos de ignorar os sintomas de uma depressão ou ansiedade?

Antes de falar a respeito das consequências de desconsiderar esses dois problemas de saúde mental é importante dizer eles que são dos mais comuns na população mundial. Uma diferença fundamental entre eles é que depressão se refere a uma única doença e a ansiedade a um grupo de afecções. Alguns dos sintomas psicológicos e emocionais da depressão são tristeza e/ou perda de interesse ou prazer pela maioria das atividades. Esses são vistos como “sintomas essenciais”, no entanto, uma pessoa com essa doença pode sentir também culpa, sentimentos de inutilidade, baixa autoestima ou baixa confiança, pensamentos de morte ou suicídio. A ansiedade no sentido clínico do termo pode incluir fobias e evoluir para transtornos de pânico. Mas o mais comum é o transtorno de ansiedade generalizada (TAG). Este concentra-se nos seguintes sintomas: a inquietação excessiva, preocupação constante e dificuldade em controlar esses sentimentos, irritabilidade e sentir-se no limite. Existem alguns sintomas físicos que aparecem tanto no transtorno de ansiedade generalizada quanto na depressão. Por exemplo: fadiga ou cansaço, dificuldade na concentração, estar inquieto ou incapaz de ficar parado, dificuldade em dormir. Como se pode notar a depressão e o transtorno de ansiedade generalizada têm algumas características distintas e outras que se sobrepõem. Para complicar ainda mais, é possível que alguém sinta depressão e ansiedade ao mesmo tempo.

Atentos a esses sintomas, assim que identificados devemos buscar ajuda especializada de um profissional da área da saúde mental, pois ignorá-los pode levar a consequências graves. Para citar algumas, aumento da probabilidade de comportamentos de risco, predisposição para uso de álcool e drogas, além de afetar seriamente a saúde física. A depressão não tratada pode resultar em ganho ou perda de peso causados pelas alterações no sono. Quando ela se torna crônica e nos acompanha durante anos acaba deixando marcas em nosso cérebro. Estudos recentes indicam que a alteração gerada por essa condição psicológica influencia estruturas como o córtex pré-frontal, afetando nossa capacidade de tomar decisões, resolver problemas, refletir.

Pessoas com depressão grave e que se recuperam de um ataque cardíaco ou um acidente vascular cerebral (derrame) apresentam nos meses subsequentes maior risco de morte. E finalmente o pior desfecho para uma depressão não tratada ou subtratada, um alto risco de suicídio. A maioria das pessoas que sofre de depressão clínica não tenta o suicídio. Mas, de acordo com estudos robustos, mais de 90% das pessoas que morrem por suicídio têm depressão e outros transtornos mentais, ou um transtorno de abuso de substâncias. 

Além do aumento da probabilidade em consumir álcool e drogas e o aumento do risco de suicídio, o transtorno de ansiedade aumenta o risco de desenvolver certas doenças. O estresse crônico, que pode estar associado à ansiedade, pode comprometer o sistema imunológico o que nos torna mais suscetível a infecções, como resfriados, gripes e outras doenças virais e bacterianas. Ou seja, em tempos de pandemia as chances de sermos infectados aumenta exponencialmente.

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