Como o Paraná – antigo parceiro preferencial da Sputnik V – agora ignora compras da vacina

Enquanto isso, negociações de vacinas conduzidas pelo estado continuam empacadas

As tratativas de desenvolvimento de uma vacina contra a Covid-19 em parceria com a Rússia empolgaram o governo do Paraná e os paranaenses ao longo de 2020. A publicação dos resultados promissores na conceituada revista The Lancet desacelerou críticas da comunidade científica contra o imunizante, batizado de Sputnik V, e fez a gestão de Ratinho Jr. brindar diante do papel de protagonista que assumia na batalha contra a pandemia: um memorando assinado semanas antes da publicação era o início de uma negociação que previa transferência de tecnologia para a produção da vacina russa nas plantas do Instituto de Tecnologia do estado (Tecpar), processo poderia estar prestes a começar se o roteiro tivesse dado certo. Mas o frenesi murchou, e o trunfo político deu lugar a um silêncio monástico. Com uma nova permissão anunciada nesta terça-feira (15), 13 estados brasileiros já têm autorização da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para importação excepcional da Sputnik V – nenhum deles é o Paraná.

A convocação para anunciar as conclusões parciais sobre a eficácia da vacina e revelar o pré-cronograma dos testes no estado, há quase dez meses, foi o último pronunciamento público sobre o tema. Desde então, uma série de questionamentos vêm sendo feitos a respeito dos motivos pelo qual a negociação derrapou. Segundo deputados ouvidos pelo Plural, o órgão financiador da vacina na Rússia, o RDFI, e o laboratório Gamaleya teriam se recusado, ao final, de exportar a tecnologia, o que atrapalharia os planos de autonomia do Tecpar e impediria o Paraná de ser um polo distribuidor do imunizante na América Latina.

O argumento não foi confirmado nem refutado pelo Instituto, que, de início, ficou encarregado de entrar com pedido de aprovação emergencial da Sputnik V junto à Anvisa. Para analisar e juntar documentos e tratar da validação da vacina em território brasileiro, o governo chegou a montar um grupo de trabalho com servidores especialistas, mas o procedimento nunca foi finalizado porque, de acordo com o Tecpar, assim como a Anvisa, o órgão “não recebeu dados completos da pesquisa para emitir conclusões”.

De fato, a falta de informações vem barrando o uso generalizado da Sputnik V no país. Em janeiro, a União Química – então nova responsável pelo imunizante no Brasil – teve pedido de autorização para realizar estudos clínicos fase 3 negado pela agência reguladora por falta de elementos considerados essenciais no protocolo clínico, como dados de toxicologia e de segurança por faixa etária, por exemplo. O uso emergencial submetido pelo laboratório também não foi consentido. Depois disso, a farmacêutica desistiu de conduzir os estudos clínicos no Brasil, embora venha fabricando doses exclusivamente para exportação.

Dias antes das negativas da Anvisa, o govenador Ratinho Jr. já havia criticado a fragilidade do conjunto de informações relacionados à Sputnik V, dando a entender que esta seria a causa do “rompimento” com a Rússia – algo que nunca chegou a ser oficializado. “O Tecpar só vai tomar alguma medida e alguma ação se tiver todos esses dados de forma cientificamente comprovada (..). Eu não vou fazer do Paraná um povo cobaia. Nós vamos, sim, avançar nas vacinas que tiverem qualquer tipo de comprovação científica”, declarou em entrevista ao canal Globo News.

Ratinho Jr. discute termos de parceria com o embaixador da Rússia, em agosto de 2020 (Foto: AEN/PR)

De uso liberado na Argentina, doses da vacina russa ainda não foram aplicadas no Brasil. Dos 14 estados que enviaram pedidos de importação da Sputnik V para a Anvisa, 13 receberam aprovação da Diretoria Colegiada em caráter excepcional, ou seja, em quantidades específicas e para fins de distribuição e uso em condições controladas determinadas – ainda por causa das lacunas nos dados. Além de Piauí, Bahia, Maranhão, Sergipe, Ceara, Pernambuco, a agência liberou na última terça-feira lotes para Rio Grande do Norte, Mato Grosso, Rondônia, Pará, Amapá, Paraíba e Goiás. Os imunizantes devem chegar até julho, depois de intermediação capitaneada pelo Consórcio Nordeste.

O Paraná chegou a ser convidado para discutir a aquisição de 13 milhões das 50 milhões de doses que estavam sendo negociadas pelo grupo de governadores, mas recuou, informou em sessão no plenário nesta quarta-feira (16) o deputado Arilson Chiorato (PT). As conversas começariam em uma reunião agendada para o dia 23 de março, que não aconteceu.

Uma semana depois, no entanto, o secretário chefe da Casa Civil, Guto Silva, confirmou à Frente Parlamentar do Coronavírus da Assembleia Legislativa (Alep) a assinatura de um contrato de 10 milhões de doses da Sputnik V, com compra prevista para quando a Anvisa autorizar o uso emergencial da vacina sem exceções. À reportagem, a pasta acrescentou que a compra dos lotes da vacina russa seguirá padrões do Programa Nacional de Imunizações, com uso de imunizantes que atendam requisitos da Anvisa “referentes à qualidade, à eficácia e à segurança das vacinas”.

A negociação destacada pelo secretário é paralela à anunciada em março junto ao Consórcio Paraná Saúde, por meio da qual o estado formalizou a intenção de comprar 16 milhões de vacinas contra a Covid-19 – inclusive a Sputnik V. “Estamos conversando com diversos laboratórios na tentativa de colaborar com o Ministério da Saúde. O Paraná não parou um só momento em busca de saídas para a vacinação”, declarou o governador à época em que formalizou os pedidos de conversa. Apesar disso, as tratativas estão congeladas.

Ao todo, foram encaminhadas oito cartas de intenções a grupos farmacêuticos distintos, com foco em 8 milhões de doses da Sputnik V; 2 milhões das produzidas pela chinesa Sinovac (Coronavac); 4 milhões da AstraZeneca; e 2 milhões do imunizante fabricado pela empresa estadunidense Moderna (que ainda não submeteu pedido de autorização no Brasil). No entanto, nenhuma ainda se materializou.

“Pelo consórcio [Paraná Saúde], ainda não temos nenhuma tratativa concreta que a gente possa afirmar que vamos receber a vacina”, afirmou o diretor-executivo do Consórcio Paraná Saúde, Carlos Setti, interlocutor formal com as farmacêuticas. “Essa movimentação feita por estados e municípios é muito válida, mas a gente tem uma questão que supera a nossa tentativa de aquisição porque os laboratórios produtores todos estão tratando direto com o governo federal”, justificou. Em março, a Câmara dos Deputados decidiu por lei liberar estados e municípios a importarem vacinas contra a Covid-19 liberadas pela Anvisa, desde que a distribuição seja coordenada pelo Plano Nacional de Imunização (PNI) do Governo Federal.

Em coletiva na última terça após reunião com os governadores de Santa Catarina e Rio Grande do Sul – com os quais o Paraná também previa acordos para dar musculatura na busca por mais vacinas – , Ratinho Jr. reforçou que mantém o cronograma de imunização dos paranaenses com base nas doses disponibilizadas pelo Ministério da Saúde. Na véspera, a Secretaria da Saúde do Paraná (Sesa) havia anunciado a definição de setembro como o mês limite para que toda a população adulta do estado esteja vacinada. No entanto, a pasta afirmou ao Plural que a criação do novo cronograma considera o envio de pelo menos um lote de imunizantes por semana ao estado e a provável disponibilidade da vacina Janssen no Brasil – a qual já está atrasada.

Dinheiro reservado

Por enquanto, o estado tem R$ 200 milhões reservados para a compra de vacinas. Metade da verba que compõe o fundo é do próprio governo, com recursos da Sesa; outra veio de um repasse feito pela Alep ainda no ano passado.

Segundo deputados, o dinheiro foi destinado para a compra de vacina, mas não há impedimentos legais que detenham a aplicação de parte do montante em outras frentes de investimento em imunizantes – como o aporte em pesquisas, por exemplo.

Desde o começo do ano, a Universidade Federal do Paraná (UFPR) vem buscando recursos para iniciar a fase clínica de testes da vacina contra a Covid-19 desenvolvida pelos seus pesquisadores. Para a conclusão dos estudos, são necessários cerca de R$ 50 milhões.

Em reunião recente com a UFPR, o deputado federal Toninho Wandscheer (PROS), líder da bancada paranaense na Câmara dos Deputados, disse que pretende levantar para os estudos nova contrapartida do Executivo estadual, na casa dos de R$ 10 milhões, e ainda mais R$ 30 milhões em recursos a serem negociados com o Governo Federal.

A Superintendência Geral de Ciência, Tecnologia e Ensino Superior (Seti) do Paraná já anunciou investimento de R$ 700 mil na pesquisa, mas a Casa Civil, responsável pela reserva financeira para vacinas, não respondeu se pretende injetar mais dinheiro no estudo. Além do baixo custo e com resultados satisfatórios nos experimentos feitos com animais, o imunizante da UFPR tem uma base de padrão multifuncional e se mostrou capaz de ser adaptado para outras vacinas, inclusive contra a dengue – desafio que o estado enfrenta há anos.

Até esta quinta-feira, o Paraná havia imunizado 1,27 milhão de paranaenses com as duas doses da vacina. O número representa 15% da meta total, que é 8,7 milhões. No boletim mais recente elaborado pela Fiocruz, o estado ainda parece em nível muito alto para a incidência de casos de Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG), um padrão de alerta para as próximas semanas de previsão de intensificação do clima frio e com baixa parcela da população já vacinada.

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