Pandemia facilita casos de violência obstétrica

Mulheres são prejudicadas por medo, falta de informação e ausência de acompanhante no parto

Mesmo que a maternidade seja um momento repleto de expectativas, esperança e felicidade, para quase metade das mulheres brasileiras a experiência do parto é traumática, marcada por medo, descaso e agressões. Por conta da falta de informações para as gestantes – principal agravante deste cenário – a violência obstétrica segue sendo normalizada por grande parte da população, que a enxerga muitas vezes como uma questão cultural do processo de parto. Durante a pandemia, o medo de contaminação, o fechamento de maternidades, a falta de profissionais e a proibição de acompanhantes nos partos facilitam casos de violência obstétrica.

Neste período, obter informações sobre a identificação desse tipo de agressão, quais procedimentos médicos são adequados e quais não são, ficou ainda mais difícil para as mulheres em período gestacional. Para a diretora social da Associação de Obstetrícia e Ginecologia do Paraná (Sogipa), Lenira Gaede Senesi, o não reconhecimento da violência provocado pela falta de informação de seus direitos é a principal causa do possível aumento no número de casos de violência obstétrica desde o início da pandemia.

A médica explica que, com medo de se contaminar, muitas parturientes deixam de frequentar as assistências médicas no pré-natal, e assim acabam não se informando sobre a violência obstétrica. 

Mesmo com o alto índice de subnotificação dos casos e consequente escassez de dados acerca dessa realidade, a doula e presidente da Associação de Doulas de Curitiba e Região Metropolitana (Adouc), Patrícia Teixeira, afirma que o número de denúncias contra esta agressão recebido pela associação aumentou muito desde o início da pandemia. No entanto, a presidente diz não conseguir mensurar a quantidade exata.

“Uma das gestantes comentou com o hospital que tinha rinite e estava com o nariz trancado e eles levaram ela para a ala Covid. Não tinha ninguém prestando atendimento a ela então ela ficou sozinha. Quando rompeu a bolsa ela se desesperou porque não sabia o que estava acontecendo. Ela foi isolada e o marido saiu correndo pelo hospital pedindo ajuda porque não sabia o que fazer. Eles [o hospital] a trataram de forma muito áspera. Não teve um apoio, um acolhimento, uma explicação do que estava acontecendo com o seu corpo”, relata a doula.

Patrícia conta que outra gestante vítima de violência obstétrica não teve condições emocionais para conversar. “Você ouve o relato e chora junto. E foram muitas situações assim. Era um desespero. Com a pandemia, os hospitais não tinham onde colocar as gestantes, era uma em cima da outra. Aí elas perdem toda a privacidade, perdem a dignidade. É bem complicado.”

Segundo a doula, esse aumento das denúncias durante a pandemia é resultado de dois eventos: a reestruturação de serviços de saúde e a adoção de novos protocolos. O fechamento de duas das principais maternidades da Capital – para servir de retaguarda no atendimento de pessoas com Covid – fez com que as instituições ficassem sobrecarregadas à medida que receberam as gestantes transferidas dessas maternidades. “Eles [hospitais] receberam mais pacientes, mas não aumentaram a equipe. Faltava espaço físico, faltava acompanhante, faltavam profissionais que atendessem às gestantes.”

Para a Organização Mundial de Saúde (OMS), entende-se por violência obstétrica qualquer dano físico, psicológico ou moral causado à mulher desde o pré-natal até o pós-parto. Entram nessa caracterização todo tipo de negligência, violência moral, culpabilização, tratamento humilhante, omissão de informações, restrição alimentar e recusa na oferta de atendimento, por exemplo.

De acordo com a pesquisa Nascer no Brasil, realizada pela Fiocruz em 2014, 45% das gestantes quem têm seus filhos pelo sistema público de saúde são vítimas de violência obstétrica. No total, 36% das mães passam por tratamento inadequado. Apesar de todas as gestantes estarem sujeitas a esse tipo de agressão, as mais afetadas são mulheres negras, pobres, grávidas do primeiro filho e em trabalho de parto prolongado. Em 2010, a violência obstétrica era uma realidade para uma em cada quatro mulheres brasileiras, segundo o Relatório Mulheres brasileiras e Gênero, da Fundação Perseu Abramo.

Traumas

Como consequência da escassez de informações e discussões a respeito do tema, muitas gestantes podem nem saber que sofreram esse tipo de violência. “A gente fica muito vulnerável. Eu nem imaginei que eu estava sendo violentada. Eu contava a história do parto e as pessoas se horrorizavam e aí que eu percebi”, relata uma professora curitibana que deu à luz em 2006.

Depois de passar por vários médicos do sistema particular e desaprovar a ideia de fazer uma cesariana – procedimento recomendado por todos os profissionais que consultou – a futura mãe, de então 22 anos, decidiu procurar assistência na Rede Pública.

Com 40 semanas e 1 dia começaram as primeiras contrações e a jovem foi para o hospital. Era próximo do meio-dia. Chegando lá, foi informada de que havia 13 mulheres aguardando para parir antes dela. Sem lugar para sentar, a gestante passou as cinco horas seguintes andando no estacionamento da instituição. Movimentar-se, explica ela, ajudava com as dores da contração e acelerava o processo de dilatação.

Até aí estava tudo bem. Eram 17h quando a chamaram para fazer uma triagem. Como estava em um hospital universitário, a jovem foi examinada por diversos estagiários e residentes de Medicina. “Vinham me ver como se eu fosse um objeto. Foi bastante invasivo”, conta.

A gestante foi encaminhada para o quarto, onde foi impedida de se movimentar pela equipe médica, que alegou que seria melhor que ela ficasse deitada na cama. Passou-se um tempo e as enfermeiras a levaram para tomar banho – o que ajuda nas dores da contração. Porém, ao sair do chuveiro, justo no momento da troca de turno da equipe, a jovem ficou sem atendimento. “Completamente molhada e tremendo de frio porque não tinham me dado uma toalha eu comecei a gritar por ajuda. Devo ter ficado uns 10 minutos assim. Pode não parecer muito, mas a gente está tão vulnerável nesse momento que 10 minutos são uma eternidade.”

Com a chegada de um novo médico, a jovem foi encaminhada para a sala onde nasceria sua filha. Porém, sua bolsa ainda não havia estourado. “O médico pegou um instrumento que parecia uma agulha de tricô e disse ‘vamos estourar essa bolsa’. Eu falava que não queria, mas não adiantou. Ele estourou mesmo assim. Foi uma dor terrível.”

Às 21h30 da noite, sem forças, a gestante recebeu a anestesia epidural. Pouco antes do início do parto, 15 pessoas se aproximaram para assistir o nascimento. Nesse momento, alegando que seu canal vaginal era estreito demais para que o bebê pudesse nascer, o médico cortou o períneo da jovem – procedimento conhecido como episiotomia, usado em 56% dos partos no Brasil segundo a pesquisa da Fiocruz, mesmo a recomendação da OMS sendo para apenas 10% a 30% dos partos. “Eu fiquei bastante constrangida. Me senti muito invadida.”

Dias depois do nascimento, a parturiente descobriu que o médico havia fraturado um osso de sua filha durante o parto. “Ela chorava muito e eu não entendia o porquê, aí descobri que era de dor”, relata. “Ninguém me falou nada. Demoraram dois dias para me falar que ela estava com a clavícula quebrada e que eu tinha que ter um cuidado na hora de pegar ela, que eu teria que levar ela em outro médico, fazer raio-x.”

“Foi um momento traumático. Talvez ele não tenha se tornado um trauma violento porque a gente está tão maravilhada com o nascimento da criança que acaba colocando panos quentes no sofrimento e no trauma. Mas podia ter sido muito diferente, com mais amor”, pondera. 

Foto: Amanda Nunes

Acompanhantes e cesáreas

Além disso, devido às medidas de controle e prevenção do coronavírus, o número de pessoas que ingressam no ambiente do parto está limitado, não sendo permitida a entrada de acompanhantes em algumas instituições – mesmo garantido pela Lei Federal nº 11.108, de 7 de abril de 2005. 

Uma enfermeira obstetra, que prefere não ser identificada, também vê a restrição do acompanhante como um agravante nos casos de violência contra as gestantes. A profissional explica que o acompanhante consegue prestar um suporte físico-emocional contínuo à mulher, o que muitas vezes a equipe médica não dá conta. “Como profissional da saúde eu entendo a justificativa da restrição no contexto de pandemia. A gente não consegue manter um distanciamento mínimo, seguro e adequado por conta das enfermarias compartilhadas. Mas como enfermeira obstetra eu reconheço a fragilidade que isso gera para a mulher no trabalho de parto e no puerpério imediato principalmente.”

Para ela, outra situação que evidencia o aumento nos casos de violência obstétrica durante a pandemia, mesmo que não haja dados oficiais que comprovem essa realidade, é o aumento expressivo no número de cesáreas mal indicadas por conta da Covid-19. “A gente vê várias mulheres sendo submetidas a anestesia e cirurgias desnecessariamente e bebês sendo privados de um tempo final de maturação pulmonar e neurológica por uma suspeita de Covid”, relata. A enfermeira afirma que esta é uma percepção geral, não apenas do local onde trabalha em Curitiba, mas do país inteiro.

No Brasil, as cirurgias obstétricas correspondem a 55%, segundo o Ministério da Saúde. A recomendação da OMS, no entanto, é que esse número fique em torno de 15%. Nas maternidades particulares de Curitiba, como mostrou o Plural, as cesáreas respondem por 82% dos nascimentos.

Manobras e ofensas

A enfermeira esclarece que as consequências causadas pelas agressões podem ser tanto físicas quanto emocionais. “Eu lembro muito claramente de estar parada na porta da sala cirúrgica e ver a obstetra tentando arrancar o neném e o anestesista debruçado com o antebraço em cima da barriga dela. Ele ficava pulsando o corpo dele em cima da barriga para empurrar o bebê para fora. Eu fiquei literalmente em choque. Quase vomitei. Foi a violência mais grotesca que eu já presenciei”, conta a enfermeira sobre o dia que presenciou uma manobra de Kristeller – procedimento em que um profissional sobe na barriga da mulher e a empurra, utilizado em 37% das parturientes, segundo a Nascer no Brasil.

Além da manobra de Kristeller, é considerada violência obstétrica a episiotomia. Isso porque não há nenhuma evidência que comprove o benefício desses procedimentos. Pelo contrário, existe inclusive a contraindicação. Entre as sequelas e riscos desses procedimentos estão: dano no períneo, hemorragia, aumento de lacerações graves de terceiro e quarto grau, infecção no pós-operatório, desconforto, piora na cicatrização, risco de prejudicar o retorno à vida sexual, risco de fratura de costela e órgãos da mulher, rotura ou inversão uterina, lesão perineal, traumatismo no bebê.

No entanto, não são apenas cortes e intervenções físicas desnecessárias no corpo da mulher que são consideradas violência obstétrica. Comentários constrangedores, ofensivos ou humilhantes à gestante, além da imposição de dificuldades, seja no atendimento ou para receber informações, também são considerados violações dos direitos da mulher.

“As enfermeiras do hospital diziam coisas assim: ‘Se você não der mamá pra ele agora, ele vai entrar em hipoglicemia e morrer’. Entravam no quarto e perguntavam: ‘você já deu mamá? Isso tem que ser feito agora porque se não teremos que colocar ele na UTI’. Furaram ele diversas vezes, não me mostraram nenhuma vez os exames dele e uma certa hora de madrugada simplesmente entraram no quarto e me disseram: ‘ele já mamou?’ Eu respondi que não. A enfermeira então disse: ‘vou levar se não ele vai morrer’ e tirou o menino do quarto. Sou mãe de primeira viagem, eu comecei a entrar num desespero tão grande que eu só chorava na maternidade. Pra mim eu ia matar ele. Não desejo isso a ninguém”, relata uma mulher no Facebook, que deu à luz em fevereiro de 2021. 

“Também pari na pandemia e meu filho tem síndrome de Down. Ele ficou 13 dias na UTI porque tinha dificuldades para respirar. No sétimo dia, ele já mamava e estava sem sonda, respirando bem. Depois de 10 dias, até as enfermeiras e a fonoaudióloga me perguntavam porque ele não tinha alta. A médica só me dizia que era o protocolo da síndrome. Depois descobri que não era. Foram os piores dias da minha vida, mas eu não tinha informações e eles são médicos”, conta outra usuária da mesma rede social. 

Doula e parto humanizado

“O que mais precisa é ter informação. O primeiro passo é a mulher entender seus direitos.” Quem afirma é a presidente da Adouc, Patrícia Teixeira. Nesse sentido, a doula tem um papel fundamental. Compete a essas profissionais fazer o apoio físico, emocional, mas principalmente informativo das gestantes.

No entanto, segundo Patrícia, que é doula há seis anos, muitas vezes elas não conseguem impedir a violência obstétrica. “No nosso código de ética está escrito que nós não podemos ir contra a conduta médica. É um sentimento terrível, porque às vezes a gente vê algumas coisas e não pode fazer nada.” Nesse caso, é responsabilidade da doula preparar a gestante e sua família para que possam compreender e identificar a violência obstétrica e assim questionar a equipe médica.

Foto: Amanda Nunes

Outra forma de tentar evitar a violência obstétrica é por meio do parto humanizado, que consiste basicamente em colocar a mulher como a protagonista do processo de nascimento. Mais do que poder escolher onde parir – seja em casa, no hospital ou em outro ambiente -, o parto humanizado é a possibilidade da mãe fazer escolhas conscientes sobre o nascimento do seu bebê. “A mulher faz o próprio parto, não o médico. É sobre respeitar o tempo dela, o tempo do bebê e ter o mínimo de intervenções possível. Se estiver ocorrendo tudo naturalmente ninguém precisa pôr a mão, é só esperar o bebê nascer”, afirma a presidente da Adouc.

De acordo com Patrícia, o parto por cesárea também pode ser humanizado, desde que a decisão seja tomada pela própria gestante como o melhor método para si, levando em consideração as recomendações médicas. Para atingir essa autonomia, a doula explica que é necessário que a grávida busque conhecer sobre suas possibilidades de parto para que as próprias decisões sejam escolhas informadas.

A ginecologista obstetra Midiã Vergara Bandeira explica que o parto humanizado é baseado em três pilares: informação, autonomia e medicina baseada em evidência científica. Isso significa que o trabalho realizado pelas profissionais atuantes do parto humanizado é voltado para o fornecimento de informações cientificamente comprovadas à gestante para que assim ela tenha autonomia para decidir o que quer. Além disso, o trabalho é realizado por uma equipe multidisciplinar que envolve médicos obstetras, ginecologistas, pediatras e enfermeiras obstetras. “A ideia é você respeitar o momento daquela mulher, respeitar as fases do trabalho de parto e deixar o nascimento acontecer da forma mais natural possível e segura para aquela gestante e aquele bebê”, explica.

Violência obstétrica é crime?

Há uma falta de leis pontuais a respeito dos direitos específicos das mulheres durante suas gestações e que sejam eficazes para proteger e garantir os direitos necessários da gestante.

Embora no Brasil não exista uma lei federal que regule o tema, há princípios internacionais e boas práticas da OMS que compõem o que é esperado de um parto respeitoso. 

No Paraná, a Lei 19.701/2018 visa coibir a violência obstétrica e evitar que mulheres sofram desnecessariamente, além imputar algumas sanções administrativas como multa para o hospital ou para o médico que praticou violência obstétrica. Se comprovada a situação, a legislação prevê a penalidade de multa às instituições no valor de R$ 106,6 mil e aos profissionais de saúde envolvidos, no valor R$ 10,6 mil.

A coordenadora do Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher do Paraná (NUDEM), Lívia Martins Salomão Brodbeck, explica que, dependendo da conduta, a violência obstétrica pode configurar crime. “Se ocorrer por meio de ameaças, lesões ou no caso de morte materna pode configurar um homicídio culposo”, exemplifica.  

Como denunciar

A violência obstétrica é uma violência contra a mulher. Isso significa que ela pode e deve ser denunciada. Lívia explica que um dos caminhos é fazer uma denúncia na ouvidoria do hospital. Além disso, pode ser feito um procedimento disciplinar contra os profissionais de saúde em seus conselhos específicos – médicos no Conselho Regional de Medicina (CRM) e enfermeiros no Conselho Regional de Enfermagem (COREN). No âmbito do Paraná, é possível fazer uma denúncia ao próprio NUDEM, para o Ministério Público Estadual ou por meio do disque-denúncia pelo fone 181.

Se foram denunciados e a ação for julgada procedente, os responsáveis pela violência podem sofrer sanções disciplinares nos seus conselhos, tendo que pagar uma indenização por danos morais e materiais à vítima. A coordenadora do NUDEM esclarece que, caso a conduta se configure crime, a pessoa que praticou a violência passa a responder criminalmente na Justiça.

Segundo a coordenadora do NUDEM, desde novembro de 2019, além das denúncias de restrição do direito ao acompanhante, o Núcleo apura 10 casos de violência obstétrica.

Ao Plural, o COREN-PR afirmou que, desde o início da pandemia, não houve nenhuma denúncia desse tipo de violência.

No Portal da Transparência do CRM-PR consta apenas a quantidade de processos novos, em andamento e julgados por ano selecionado. Até o fechamento da reportagem, a administração do conselho não respondeu aos questionamentos do Plural a respeito do número de denúncias de violência obstétrica desde o início da pandemia.

Para denunciar, é importante reunir os seguintes documentos:

  • Um relato escrito;
  • Testemunha – se possível;
  • Prontuário médico (fornecido pela própria instituição de saúde);
  • Plano de parto – se tiver;
  • Exames.

Serviço:

Colaborou: Maria Cecília Zarpelon

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