Foram 20 minutos. Foram duas vidas inteiras

Vítima de estupro, Chanel Miller conta como o crime marcou sua vida

Aos 19 anos o estudante Brock Turner tomou uma decisão ruim. Foi a uma festa, bebeu demais, assediou diversas mulheres. Ele fez mais: atacou e estuprou uma mulher de 22 anos que tinha bebido demais e perdeu a consciência. Naquele 18 de janeiro de 2015 pareceu que aquilo tinha representado apenas 20 minutos. Mas não: aquele episódio duraria a vida inteira.

Quando estava sobre a vítima, no chão, atrás de uma lixeira no jardim da casa onde a festa estava acontecendo, Brock foi visto por dois estudantes que o interromperam, gritaram, correram atrás dele e o detiveram. A moça, inconsciente, só foi recobrar os sentidos quase duas horas depois, no hospital, sem saber que tinha sido estuprada.

Por quatro anos, a vítima de Turner não teve um nome. Era chamada por um nome genérico, Jane Doe, na imprensa e nos documentos do processo judicial do caso.

Enquanto ela era desconhecida, Turner ganhava contornos fortes. Soubemos que ele era atleta, um nadador promissor com chance de ir para as Olimpíadas. Um estudante de destaque, aceito em Stanford com bolsa de estudos. Tudo isso seria jogado fora porque em 20 minutos Brock tomou uma decisão ruim.

É essa história que está em Eu tenho um nome, de Chanel Miller. Miller é a vítima cujo nome estava oculto. Em 2019 ela abriu mão do anonimato para poder contar sua versão da história, o que aqueles 20 minutos custaram a ela. E custaram muito.

Miller deixa claro que ela também tomou uma decisão ruim. Não só uma, na verdade. Várias. Ela foi a uma festa de faculdade porque não tinha nada melhor para fazer apesar de já ter se formado. Comeu pouco. E bebeu muito.

Mas ela não decidiu estar no chão, atrás das latas de lixo com Brock. Nem acordar num hospital horas depois sem saber o que tinha acontecido.

No entanto, em Eu tenho um nome ela revisita essas “más decisões” inúmeras vezes. Principalmente porque por ir aquela festa Miller viu pessoas que ama sofrerem. Viu a irmã tendo que deixar a vida universitária para participar de procedimentos judiciais. Viu a dor nos olhos dos pais, da avó.

Não é fácil ler o relato de Chanel. Ela não nos poupa da angústia em que mergulhou. Não esconde a dor, a confusão, a culpa. E é extremamente competente em pegar o leitor pela mão e fazer com que ele mergulhe na espiral desnorteante que ela mesma viveu.

O livro consegue mais do que mostrar que ela perdeu tanto ou mais que Brock naquela noite. Ele dá à vítima uma representação tridimensional. Um corpo que se dobra, mas também tenta se reerguer. Desenha didaticamente tudo que uma mulher vê se perder depois de ser violada.

Mas não espere um muro de lamentações, nem uma lição de superação. Chanel não existe para dar lições para ninguém. Ela existe porque sabe que sua presença vai habitar a solidão de outras mulheres.

Por quatro anos Miller não teve nome. Mas sua mensagem é poderosa. Ela já havia tocado milhares de pessoas quando a carta que leu no tribunal, no dia em que seu estuprador recebeu a sentença, foi publicada pelo Buzzfeed. Sua voz mereceu ser citada por Hillary Clinton no discurso em que reconheceu a derrota para Donald Trump. E uma carta de Joe Biden, na época vice-presidente.

Mas o livro vai além. Ele documenta para as mulheres do futuro que um dia houve uma justiça que dava mais valor às perdas sofridas pelos estupradores. Até que uma voz moveu a primeira pedra, e essa pedra se tornou uma avalanche de mudança.

Serviço

Eu tenho um nome, de Chanel Miller. Tradução de Carolina Selvatici. Intrínseca, 336 páginas, R$ 59,90 (papel) ou R$ 39,90 (e-book).

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