Banalizaram a “banalização do Holocausto” – e por que devemos desbanalizá-lo

O problema está no uso indiscriminado, abusivo, deturpado, desonesto, fora de contexto e por muitas vezes degenerado deste genocídio.

Banalizaram a “banalização do Holocausto”. O ato de comparar passou a ser visto simplesmente como banalizar – como se o Holocausto estivesse em um pedestal mítico no rol dos eventos históricos e não pudesse ser tocado ou invocado, apenas cerimonializado. A noção de que ele seria singular e incomparável é absurda – e muita tinta já foi gasta para explicar isto, de Bauman a Bauer, de Bankier a Milgram. A priori, fazer comparações entre fenômenos históricos (e humanos) não se constitui, em si, um problema metodológico. É possível e necessário. Só assim conseguimos dar sentido e utilidade contemporânea ao conhecimento.

O 27 de janeiro, Dia Internacional em Memória às Vítimas do Holocausto e aniversário da liberação do complexo de extermínio de Auschwitz-Birkenau, é mais uma oportunidade para universalizarmos a memória deste genocídio. Uma das formas é evitando a ideia de que comparar eventos ao Holocausto, apesar de tarefa complexa, seja proibido, o que contribuiria para uma sacralização da tragédia. A História é uma ciência comparativa por excelência e o Holocausto, fruto dela, pode ser usado em analogias.

O objetivo desse texto não é convencê-lo de tal. Para isso, o conhecimento teórico e o vasto conteúdo acadêmico podem ser apreciados. O tema da comparação é apenas o pressuposto para uma discussão sobre o que seria a “banalização do Holocausto” e como esse argumento tem sido “banalizado” no Brasil.

A ideia de “banalização” surgiu como uma consequência negativa (embora existam as positivas) da concepção universalista do Holocausto, criticada por grupos normalmente judaicos, com uma visão particular, que esbravejam contra qualquer comparação – e geralmente não se importam quando se comparam antissemitas a nazistas. Tal “risco” de banalização, no entanto, não deve existir pela singela tentativa de correlação. O problema está no uso indiscriminado, abusivo, deturpado, desonesto, fora de contexto e por muitas vezes degenerado deste genocídio.

Museu do Holocausto de Curitiba. Crédito da foto: Maringas Maciel.

O argumento que ficou conhecido como a “banalização do Holocausto”, típico do discurso particularista, banalizou-se como uma acusação contra qualquer comparação. Toda analogia tornou-se passível de ser condenada pelo simples motivo de ter sido realizada. Muitas comparações pertinentes têm sido deslegitimadas com a justificativa da “banalização”. Como se a alegação, às vezes criteriosa (e científica, não uma mera opinião), anulasse o mérito da comparação. Afinal, aceitar as analogias seria inconveniente para muitos, já que implica em admitir que apoiam políticas e políticos cujas ações têm paralelos com o nazismo.

Vulgarizar, e não banalizar

Por banalizar, devemos dizer “vulgarizar”, não confundamos. Em meio a artigos e posts que sugerem uma atual “banalização do Holocausto” no contexto sociopolítico brasileiro, devemos salientar o conceito de “vulgarização”. Tal concepção é polemizada por autores como o acadêmico israelense Manfred Gerstenfeld, por meio da expressão Holocaust trivialization. Autor da obra The Abuse of Holocaust Memory, ele destaca que esta trivialidade é uma ferramenta poderosa para que ativistas, ideológica ou politicamente motivados, comparem metaforicamente fenômenos que supostamente se opõem ao extermínio de judeus.

A origem destas comparações, como apresentada em diversos textos publicados pelo Museu do Holocausto de Curitiba, é a ideia preconcebida (e equivocada) do Holocausto como uma metonímia do mal absoluto, símbolo da total perversidade em sua mais alta escala. Esta percepção reducionista visa colocar sob responsabilidade do outro, adversário ou opositor ideológico, toda a carga perniciosa do nazismo. Para Gerstenfeld, “aqueles que abusam de comparações com o Holocausto para seus propósitos ideológicos desejam exagerar a natureza maligna de um fenômeno que condenam”.

A “vulgarização do Holocausto”, portanto, relaciona-se com uma distorção do significado histórico da tragédia pela apropriação descontrolada do termo para fins políticos, ideológicos ou mercadológicos. Além das falsas e desonestas analogias partidárias, exemplos de tais comparações, todas elas descritas por Gerstenfeld, incluem danos e desastres ambientais, aborto, abate de animais, uso de tabaco, derrotas esportivas e riscos nucleares. O advogado e diretor da Anti-Defamation League, Abraham Foxman, descreveu esse fenômeno como uma “epidemia para invocar analogias ofensivas sobre o Holocausto nas discussões de assuntos controversos”.

A desbanalização do Holocausto

Museu do Holocausto de Curitiba. Foto: Maringas Maciel

Em tese, nem toda comparação resulta numa “vulgarização do Holocausto”. Comparar nem sempre é banalizar, pelo contrário: faz parte do processo de construção do conhecimento histórico e do entrelaçamento com outras ciências sociais. Este esforço sério e honesto resulta não em banalização, mas numa “desbanalização” da Shoá.

Desbanalizar significa comportar-se de acordo com as úteis lições que historiadores e educadores tiram deste período histórico. De forma responsável, identificar elos e conexões entre o que passou e o que está passando, sem receio de sacrilégio e compreendendo para que nos serve a História. Quando falamos “nunca mais”, renovamos um pacto coletivo de identificarmos os sinais e lutarmos contra toda e qualquer forma de ódio e intolerância, contra qualquer grupo e em qualquer parte do mundo. Quando falamos “nunca mais”, nos comprometemos a manusear a memória do Holocausto e utilizá-la como agente transformador, sem vulgarizá-la. A desbanalização pressupõe dar sentido à esta memória no presente.

Cada caso é um caso, obviamente. Analogias vulgares são inoportunas, desrespeitosas, ofensivas e até criminosas. Entretanto, há analogias imprescindíveis, conscientes, criteriosas e historicamente alicerçadas, que nos ajudam a cumprir a promessa do “nunca mais” – e estas devem ser estimuladas. Precisamos diferenciá-las, compreendendo nosso protagonismo na construção de uma memória coletiva universal e plural do Holocausto. Todos temos direito de invocá-lo.

A construção desta memória depende de todos nós, hoje. E para que o legado ético e de direitos humanos criado a partir do genocídio seja finalmente aprendido por todos nós, é preciso quebrar o argumento de que toda analogia significa “banalizar o Holocausto”. E que as comparações sejam analisadas por suas coerências históricas, e não pelos atos de propor um paralelo – que, de tão constantes e automáticas estas condenações, geram uma banalização da “banalização do Holocausto”. Este legado pertence a todos nós. Usemos sem pudor, tanto no 27 de janeiro quanto nos outros 364 dias do ano.

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