Quando os navios de Colombo aportaram nas areias da América pela primeira vez, viviam neste continente cerca de 70 milhões de nativos. Os números variam bastante. Este é estimativa do inglês John Collier, utilizado por Galeano em As Veias Abertas da América Latina. Ele ainda aponta que, um século e meio depois da chegada dos estrangeiros, a população de indígenas tinha caído para 3,5 milhões. Uma verdadeira calamidade. Um genocídio.
O mestre Gabriel García Márquez, ao discursar na Academia Sueca depois de ser laureado com o Nobel de Literatura de 1982, constatou que a independência do domínio espanhol não nos pôs a salvo da demência. Penso que se esqueceu de adicionar o Brasil e os portugueses na equação, porque aqui a inconfundível realidade não é diferente. Ficamos, acredito, ainda piores.
O que há hoje é uma ilusão conjunta de que somos efetivamente um povo livre. Naquele tempo, 500 anos atrás, era impossível, devido à obviedade das relações coloniais, pensar desta forma. Nossa falta de liberdade é o cataclismo permanente da América Latina, terra cuja história foi reduzida a explorações e abandonos. O caso dos indígenas é sintomático. É inacreditável que apenas um punhado de pessoas pare para refletir sobre o desaparecimento gradual de centenas de povos e culturas nativas. Parece que, no geral, encaramos a situação como uma catástrofe divina destinada a acontecer desde o princípio do mundo — quando, ao contrário, é nada menos que selvageria.
No Brasil, temos dados bastante plausíveis. A antropóloga e demógrafa Marta Maria Azevedo, ex-presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai), compilou números estarrecedores. Em 1500, data da chegada de Pedro Álvares Cabral, a população de indígenas no país era de três milhões. Dois milhões concentrados no Litoral e o restante nas áreas mais interiores. Em 1570, a população litorânea tinha passado para 200 mil. Compreensível, já que estes povos foram dizimados por guerras, doenças, escravidão e explorações de toda sorte.
O número continuou a cair nos séculos seguintes. Só cresceu significativamente a partir de 1991, quando o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) incluiu os índios pela primeira vez no Censo Demográfico. Deste ano em diante, o contingente brasileiro que se declara indígena aumentou em 150%. O Censo de 2010 marca exatamente 817.963. É o número mais aproximado para a quantidade total de indígenas no Brasil. Destes, 315.180 habitam zonas urbanas. De qualquer forma, são 0,26% da população.
Ou seja, o ambiente original indígena foi amplamente deturpado, e não só pela turma do século XVI e seus mais próximos conterrâneos. A exploração de terras nativas, e demarcadas, disparou de maneira absurda desde o século passado. Atualmente, com tantas tecnologias à disposição dos espoliadores, a coisa tem fugido totalmente do controle. O mais sarcástico é que as relações capitalistas de produção que tornaram isso possível formaram-se, na Europa, a partir de riquezas naturais roubadas desta mesma terra.
Os níveis de exploração das florestas tropicais no Brasil até foram controlados via monitoramento e fiscalização da Funai por um bom tempo, mas desde 2017 a taxa de desmatamento amplificou-se como nunca antes. Dados da Global Forest Watch, um aplicativo em tempo real atualizado pela Universidade de Maryland, nos Estados Unidos, destacam que cerca de 12 milhões de hectares de florestas tropicais desapareceram do planeta em 2018. Brasil e Indonésia são responsáveis por 46% do valor. Nosso país é o que mais perdeu árvores: 1,3 milhão de hectares.
E não paramos por aí. Um importante levantamento, feito pela Rede Amazônica de Informação Socioambiental Georreferenciada (RAISG), identifica que 68% das áreas de proteção ambiental e territórios indígenas da Amazônia estão ameaçados por projetos de infraestrutura e “planos” de desenvolvimento econômico levados a cabo pela esquálida elite do desastre. E a coisa vai neste sentido. Temos, sentado na principal cadeira do Palácio do Planalto, um ignóbil completamente incapaz que jamais teria chego lá pelo andar das próprias pernas. Um confesso lacaio dos Estados Unidos, que já deu a Donald Trump carta branca para explorar pelo menos a parte brasileira, aproximadamente 60%, da floresta amazônica.
Em discurso dos mais perversos que um ser humano é capaz de proferir, disse, no Clube Hebraica do Rio de Janeiro, um ano antes de ser eleito: “Não vai ter um centímetro demarcado para reserva indígena ou quilombola”. Em junho de 2019, editou uma medida provisória que transfere a demarcação de terras indígenas da Funai para o Ministério da Agricultura. Parece brincadeira, mas foi o que aconteceu. Atitude consonante com a degradação moral e ambiental que é o projeto do dinheiro. Ele já havia dito, quatro anos antes, que índios eram um obstáculo à mineração e ao agronegócio.
Tereza Cristina Dias, atual ministra da Agricultura, é a líder da bancada ruralista. A musa do veneno. O ritmo de liberação de agrotóxicos em 2019, em dados do próprio ministério, é o mais alto já registrado. Foram 169 produtos liberados de janeiro a maio de 2019, dos quais 48% são classificados, pelo Greenpeace, como alta ou extremamente tóxicos. Para ter uma ideia, a União Europeia sequer permite 25% deles. Oito são moléculas ou misturas de glifosato, substância associada a um tipo de câncer. Basta olhar para perceber que, dentro deste contexto, não há liberdade nem para controlar direito o que comemos.
As intenções governistas são muito claras, e nada têm a ver com a autonomia do país. Ricardo Salles, ministro do Meio Ambiente, carrega a contradição de ser uma ameaça ao Meio Ambiente. À BBC News Brasil, disse que quer investimento estrangeiro para ampliar as atividades econômicas na Amazônia. Ele explicou que o objetivo é atrair empresas de diferentes países, a exemplo da norueguesa Hydro, pivô de um escândalo envolvendo a descoberta de um duto clandestino para lançar lixo nas nascentes amazônicas. É desesperador. “É importante lembrar que a Amazônia pertence ao Brasil, portanto é o Brasil que deve escolher quais as melhores estratégias de preservação”, afirmou o infame. Só se esqueceu de que os povos nativos formavam 100% da população brasileira antes de o inacabável massacre ter começado.
A invasão de áreas indígenas, para eles, não é um problema. É uma solução. Aproveitam para justificar as atitudes dizendo que já existe, sem o controle do governo, exploração ilegal em vários lugares da floresta. O que é verdade, mas que deveria, justamente, ser motivo de combate. Ataques a aldeias das mais diversas têm aumentado por todo o país — seja por exploração ilegal de mineradores e madeireiros, incêndios propositais ou ameaças de grileiros. Debaixo da enorme cortina de fumaça, índios são assassinados o tempo inteiro. Incluindo fortes lideranças que já vinham sendo perseguidas, como o cacique Jorginho Guajajara. Em ato de baixeza espantosa, a Polícia Civil declarou que ele havia sido vítima de afogamento. Claro que sim.
O Censo de 2010 mostra que o Brasil tem 305 etnias e 274 línguas indígenas. É muita riqueza. Mesmo com todas as suas aproximações, são povos únicos, detentores de conhecimentos fascinantes. Hoje, eles mesmos têm noção de que precisam deixar as aldeias para mostrar, inclusive em outros continentes, que aquela cultura também tem valor. “Temos que colocar dentro da internet as nossas histórias, para essa sociedade entender que nós também somos cidadãos e seres humanos”, esclarece, em vídeo, o pajé Tadeu Siã Txana Hui Bei. É difícil não se emocionar. Com as excursões que já fez por aí, conseguiu ótimos resultados para a comunidade — principalmente em questão de visibilidade. Muita gente, de dentro e de fora do país, começou a ir ao Acre para participar dos rituais xamânicos originais da floresta.
O que mais comove é a vontade não só de conservar a tradição Huni Kuin, mas de compartilhar com o planeta uma ferramenta de cura. Para o pajé, a medicina ajuda todo mundo. Quando guia a cerimônia, reza inclusive para os alucinados que trabalham noite e dia para prejudicá-los. Que bom seria se os calhordas que detêm o poder de decisão na sociedade pudessem participar de um ritual e tomar uma boa dose de ayahuasca. Quem sabe pudessem ver, pelos olhos da jiboia, a insanidade que se passa. Como é improvável, temos de nos contentar em fazer o que está ao nosso alcance para proteger estas armas sagradas. Armas de amor e de felicidade, nunca de fogo.
Neste momento, em que o profundo contato com a natureza é tão urgente, a ayahuasca se faz ainda mais fundamental. Precisamos entender o que nos cerca antes que seja tarde. Fica mais difícil a cada volta do ponteiro, mas o espírito da vida continua nos chamando. Que possamos atendê-lo, por favor. Se é quase impossível na alucinação que nos impuseram à força, que seja abrindo as portas da nossa percepção. Lá, do outro lado, talvez encontremos a resposta para transformar o nosso sórdido destino. Mais do que uma experiência individual, é uma necessidade da nossa época.
Curitiba, julho de 2019
*Quinto e último capítulo do livro-reportagem ‘Os caminhos do cipó: perspectivas sobre o consumo contemporâneo de ayahuasca’.