Bioquimicamente, a ayahuasca é classificada como um psicoativo alucinógeno ou até droga medicinal. O curioso é que, se ingeridos separadamente, os dois compostos que formam a bebida surtem pouco ou nenhum efeito. A N,N-dimetiltriptamina (DMT), que é o princípio alucinógeno encontrado nas folhas de alguns arbustos do gênero Psychotria, e em várias outras plantas medicinais, não surte efeito perceptível em doses até aproximadamente 1000 mg se consumida por via oral — embora isso aconteça de forma parenteral, como aplicação intravenosa. O bloqueio acontece porque o nosso corpo produz uma enzima, a monoamina oxidase (MAO), que impede a DMT de atingir o cérebro na forma ativa.
É aqui que entra o cipó Banisteriopsis caapi, popularmente conhecido como jagube ou mariri. Ele contém grandes quantidades de alcaloides beta-carbolínicos, como a harmalina e a tetrahidroarmina, substâncias capazes de restringir drasticamente a ação da enzima. Literalmente, abrem o caminho para que a DMT da Psychotria viridis, a rainha da floresta, produza efeito mesmo por administração oral. Quando consumido por meio do composto final da ayahuasca, o alucinógeno causa, então, uma série de implicações físicas e psicológicas.
Entre as ações, está uma profunda transformação do Sistema Nervoso Central (SNC), o que afeta a capacidade individual de percepção da realidade. O elevado número de sinapses causa uma atividade cerebral muito mais acelerada e expande a consciência. Por consequência, a DMT provoca mudanças no corpo todo. São diversos os efeitos colaterais possíveis, que afetam boa parte dos usuários: vômito, mal-estar, diarreia e alterações emocionais significativas.
Há ainda o estado contemplativo, de transe, que rendeu à ayahuasca a classificação de enteógeno. “Entheos”, do grego, significa “Deus dentro”. Caracteriza justamente a condição reflexiva pela qual passam os indivíduos que participam de rituais xamânicos ou espirituais dessa natureza. Como se estivessem reféns de um poder divino.
“Aumentam os níveis de serotonina, dopamina, norepinefrina e epinefrina no cérebro”, esclarece o psiquiatra João Luiz da Fonseca Martins, da Unidade Intermediária de Crise e Apoio à Vida (UNIICA), de Curitiba. A serotonina, por exemplo, tem um papel importante no controle da temperatura corporal, no desejo sexual e no equilíbrio das funções perceptivas e cognitivas. Ela também influencia na atividade de neurotransmissores relacionados a sintomas de angústia, medo e ansiedade — como a dopamina e a noradrenalina, fundamentais para o controle do nosso humor.
Aliás, a disfunção na atividade serotoninérgica é um problema comum em casos de depressão, e alguns estudos já foram feitos para analisar a capacidade da ayahuasca no tratamento deste tipo de doença. O psiquiatra Jaime Hallak, que é professor na Universidade de São Paulo (USP), já conduziu algumas investigações acerca da natureza terapêutica de certos psicoativos, entre eles a DMT.
Estudos
Em um dos trabalhos realizados pela equipe de Hallak, com participação do neurocientista Dráulio Barros de Araújo, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), foram administradas doses de ayahuasca e de uma substância sem ação farmacológica, um placebo, para 29 pessoas diagnosticadas com depressão. Quinze receberam o placebo e catorze ficaram com uma dose de ayahuasca. A fim de fazer uma análise mais completa, os pesquisadores acompanharam todo o processo imediato e também a semana seguinte à aplicação.
O resultado foi animador: os dois grupos apresentaram melhora nos sintomas depressivos; cerca de 60% dos que tomaram ayahuasca diminuíram os sinais em mais de 50%, contra 27% do grupo que recebeu o placebo. A função da DMT foi revelada de forma mais precisa em outro experimento, de 2016, em que o grupo de Hallak pôde perceber um aumento da atividade cerebral em três áreas responsáveis pelo controle do humor e das emoções: núcleo accumbens, ínsula direita e área subgenual esquerda. Foi registrada uma alteração para melhor nos sintomas de 17 indivíduos depressivos pelo menos em até 21 dias após o consumo da bebida. Mas ainda é pouco.
Os estudos que volta e meia aparecem na área ainda são inconclusivos em muitos aspectos. Não se pode determinar, por exemplo, quais são os efeitos da ayahuasca a longo prazo. As estatísticas que existem são de pura observação, como no caso de pessoas que fazem a utilização ritual da bebida há anos. Podem parecer normais, mas não há prova científica de que nada foi permanentemente alterado nos seus organismos. Também pelo acompanhamento de casos específicos, foi possível perceber efeitos negativos em pacientes com problemas psicológicos pré-existentes, como esquizofrênicos e bipolares. Dentro desses grupos, existem relatos de agravamento de sintomas psicóticos após a ingestão de ayahuasca. Os motivos ainda não são muito claros, mas têm a ver com a transformação do sistema nervoso. Pior para um esquizofrênico, que por natureza já tem dificuldades em distinguir a realidade da ilusão.
O Dr. Martins, por exemplo, não indica ayahuasca para pacientes com problemas de drogadição justamente porque as pesquisas são insuficientes. “São estudos de caso, ou seja, têm um nível baixo de complexidade e fidelidade. E a gente tem, no mercado, diversas opções terapêuticas seguras que deveriam ser utilizadas em detrimento de uma fórmula experimental”, afirma. Ele conta que alguns pacientes chegaram a procurar a ayahuasca por conta própria, mas, na prática clínica, não dá para notar benefícios superiores aos do tratamento tradicional. “Não existe uma superioridade no uso da ayahuasca para o tratamento de uma dependência química.”
O que a análise de casos deixa claro é a atividade subjetiva da ayahuasca. Se ela atua de formas diferentes em indivíduos diferentes, não fará o efeito desejado em qualquer pessoa que sequer saiba o que está fazendo ou o que está buscando. É preciso uma preparação acima de tudo psicológica. Se não houver essa compreensão, dificilmente pode-se tratar alguém em dependência química. Ayahuasca ajuda e pode definitivamente transformar, mas não tem o poder de fazer milagres. Com certeza, os índices de melhora em casos assim seriam mais altos se o diálogo entre ciência e espiritualidade estivesse mais aberto. Mas é difícil, entendo, colocar nas planilhas científicas algo quase intraduzível.
A luta da medicina atual é justamente para procurar alternativas que possam aumentar as probabilidades de recuperação dos pacientes. Nem todos alcançam a remissão total dos sintomas por meio da ingestão de remédios e das internações. O próprio Dr. Martins afirma que existem pacientes para as diversas possibilidades de tratamento. O que falta é mais tempo para que a ayahuasca possa ser encarada como umas destas possíveis opções inclusive dentro das clínicas de psicologia e psiquiatria.
E tempo é justamente o que não tivemos, especialmente no Brasil. Aqui, a ayahuasca só foi regulamentada pelo Governo Federal em 2010, e apenas para fins religiosos — sem contar o atraso da sociedade toda por conta do tabu e do preconceito em relação às drogas alucinógenas. De qualquer forma, as pesquisas estão saindo e trazem com elas ótimos resultados. Caminhamos. Devagar, mas caminhamos.
Miração
Outro aspecto fundamental pouco explorado é o papel das mirações, que são o verdadeiro tesouro da ayahuasca. São elas que proporcionam os sentimentos transformadores, e só ao compreendê-las por inteiro é que podemos ter um parâmetro do que a bebida realmente pode representar a nível comportamental.
A miração é um estado intenso de imaginação. Portanto, não acontece no mundo físico. É neste outro plano (espiritual, talvez) que podemos significar, sob os estados alterados da consciência provocados pela DMT, as infinitas imagens que surgem sem intervalo na nossa frente. Essas imagens podem estar na nossa cabeça desde muito antes da experiência, mas é ali, naquele momento, que temos a oportunidade de trabalhá-las com profundidade.
“Costumo dizer que somos as imagens que carregamos. Imagens de nós mesmos, imagens das nossas relações”, aponta o antropólogo Marcelo Mercante, hoje aluno de pós-doutorado na Universidade de São Paulo. Podemos entender as imagens como conceitos e pensamentos que fazem, inclusive, parte das áreas não conscientes da mente — que ganham peso e consistência justamente quando se transformam em ações concretas no mundo material. São nossas ideias, em última instância, que constroem as bases sólidas do planeta. A casa onde você mora, a cadeira onde está sentado, as roupas que veste… Tudo, absolutamente tudo que foi criado pelo ser humano esteve, uma vez, na imaginação de alguém.
Mercante acredita, então, que o processo de transformação interior acontece, sem dúvidas, na miração, um estado superior de imaginação. “Ela envolve não só criar novas imagens, mas nos conscientiza das imagens velhas que carregamos e trabalha com elas.” Este é o poder incalculável não só da ayahuasca, mas também de qualquer outra forma menos impactante de expansão da consciência — como a meditação.
É um espaço voltado unicamente para a ressignificação de figuras e pensamentos que, mais tarde, deixam o plano das ideias para agir aqui, na realidade tal qual a percebemos. Além disso, a miração abre possibilidades perspectivas para o mundo exterior — como a imensidão de cores, formas, sensações e estímulos. É como se o filtro da sobrevivência (pautado pelo controle do espaço-tempo) deixasse de funcionar no cérebro e pudéssemos ver, ouvir e sentir coisas que aí estão naturalmente, mas aos olhos sóbrios são invisíveis.
Toda aquela quantidade de informação é intolerável para a condição “normal” do ser humano. Jamais conseguiríamos sobreviver o tempo todo na transcendência. Enfim, temos, infelizmente, que nos preocupar com comida, sono, cansaço, correria. Mas, se a miração ajuda a transformar conceitos e princípios enraizados no fundo da nossa cabeça, mudamos também o nosso comportamento. É por isso que a ayahuasca funciona como um psicólogo individual, tanto para os indígenas da Amazônia quanto para os hippies da contracultura. Uma voz que parece exterior, mas que na verdade é o nosso âmago falando com nós mesmos e apontando, sem escrúpulos, os pontos que devemos repensar e reconstruir.
*Segundo capítulo do livro-reportagem ‘Os caminhos do cipó: perspectivas sobre o consumo contemporâneo de ayahuasca’. Acompanhe os próximos aqui no Plural.
Quero muito viver essa experiência (que será amanhã inclusive)23/06 mas o medo de passar mal e o efeito durar semanas e me prejudicar no trabalho é maior ainda.
Eu passei muito mal na primeira dose, vomitei muito na segunda, mas aprendi que tem coisas que não controlamos é melhor nos submeter e a ayuasca é uma delas.depois do efeito de mal -estar tive um bem estar enorme ,um sentimento de gratidão.
Tenho transtorno bipolar e disseram que não era recomendado pra mim pois poderia induzir a um episódio de mania. É uma pena, pois gostaria de ter a experiência da consagração.
nao consigo ler em nenhum lugar o que tem naquele vomito preto. eu enchi um balde de vomito preto. e isso que antes havia vomitado sò o pouco que havia comido algumas horas antes da cerimonia e era vomito normal e depois comecei a stare male e fiquei impressionada da quantidade do vomito preto, pois vomitei tres vezes essa coisa jorrando da mia boca. eu sou vegana magra e atletica. como è possivel produzir tanta coisa que sai do meu organismo. e claro eu fiquei super enjoada toda a cerimonia e puta da cara pq fiquei mal. fiz tanto pipi, e via coisas luminosas as folhas as arvores mas pensei que era parte da decoraçao do lugar mas nao era!
Marcia
A Dose que tomou foi considerada baixa ou na média ou alta para uma pessoa iniciante
Boa Noite!! Eu consagre a medicina ontem.
Eu senti a dor da morte, foi angustiante, perdi, total o domínio do meu corpo,vi muitas cores, pessoas no mar como se fossem bonecos de cera, temia muito, apaguei várias vezes e ainda estou me recuperando.
Vc pode procurar o líder da casa que vc foi, geralmente eles tem alguma informação para te passar… Mas pelo seu relato, parece que tem coisas que sua mente guarda que vc precisa curar, talvez esquecer… Peça a espiritualidade também para te orientar em sonho ou em intuição. Boa sorte e volte pra uma segunda experiência!
Tomei o chá de ayoasca e senti meu corpo levitar com muitas luzes e um fraqueza total não consegui levantar só consegui levantar depois de muito tempo
No momento que meu corpo levitava minha cabeça eu só tentava esconder enfiar nun buraco ,uma sensação boa do corpo e uma sensação horrível da cabeça , queria muito saber o significado disso
Ainda busco entender o quanto é real ou imaginário nas visões obtidas pelo uso da medicina.
Bom dia. Eu faço uso da ayahuaska 1 vez por mês aproximadamente há 6 meses. Mudou bastante a minha maneira de ver a vida. Hoje sou mais generosa, não consigo mais beber álcool nem socialmente, valorizo pequenos detalhes com intuito de ser e não ter e tenho mais respeito comigo e com os outros.
Obs: busquei o uso da mesma por curiosidade e por sentir que queria mais sentido para a minha vida.
Abraços
Boa tarde! Vc escreveu um belo e verídico artigo, tomei ayahuasca e tudo que falam a respeito dos sintomas e mirações é verdade.
Concluo que, mais forte é o ritual os cantos e as orações ajudam a elevação espiritual.