Ayahuasca: os caminhos do cipó

O uso religioso e o consumo contemporâneo da bebida feita de cipó e folhas da Amazônia

Esta publicação faz parte do Festival de Jornalismo Literário, organizado em parceria pelo Plural e faculdades de jornalismo de Curitiba e Ponta Grossa

O consumo ritual da ayahuasca na modernidade acontece de  diversas formas e é feito por grupos muito diferentes entre  si. Houve um processo de ressignificação da bebida em mais  de um contexto sociocultural, o que ajudou a espalhar o conhecimento pelo mundo. Para entender melhor toda a transformação, precisamos voltar séculos lá atrás, no coração da  Amazônia Ocidental, e fazer uma breve recapitulação histórica. 

Pense na infinidade de anos necessários para descobrir  que a cocção entre um determinado cipó, o Banisteriopsis  caapi, e as folhas de algumas espécies do gênero Psychotria,  em especial a P. viridis, resultaria numa bebida capaz de levar  o indivíduo diretamente para o plano primordial da existência.  Pois bem. Não temos condições de saber se a revelação se deu  pelo sucesso de uma busca que já havia fracassado incontáveis vezes ou por simples acaso, provavelmente as duas coisas,  mas a experiência deve ter sido tão marcante que os indígenas  envolvidos resolveram transformar o achado em pilar fundamental de suas comunidades. 

Embora seja impossível determinar com precisão exata  quando foi que o nativo sul-americano colocou a bebida na  boca pela primeira vez, podemos afirmar que o acontecido  data, no mínimo, de 2000 a. C. A estimativa parte do estudo de artefatos e pinturas iconográficas milenares, também poderosos documentos históricos, da região onde hoje é o Equador.  Quase como desvendar a cultura egípcia a partir de artesanatos e desenhos encontrados na Necrópole de Gizé, onde estão  as três famosas pirâmides.  

Não bastasse o longuíssimo tempo de história humana até a  descoberta da substância, ainda foram necessárias mais algumas boas centenas de anos para que ela se disseminasse pelas  mais diversas tribos amazônicas. Passam de 70 os grupos que  conhecem a bebida. O nome varia de acordo com a comunida de: ayahuasca, yagé, kamarampi, nixi pae, caapi. São mais de 40. 

“Ayahuasca” vem do quíchua, importante família linguística indígena da América do Sul. O idioma é oficial em países como Peru, Equador e Bolívia. “Aya” significa “morto”, “alma”,  “espírito”, enquanto “Waska” quer dizer “cipó”, “liana”, “corda”.  A palavra acabou se tornando a mais comum para designar a  bebida longe do seu local de origem. Seja qual for a tradução  que fizermos, fato é que a própria etimologia indica uma conexão entre o plano espiritual e terreno — oposição que permeia  religiões e crenças de qualquer época no mundo inteiro. 

O pensamento de que a realidade se estende para além  do material é o que interliga estas sociedades indígenas. Todas encaram a ayahuasca como uma ferramenta de acesso ao  “outro lado”, embora a sua função dentro das tribos não seja  exatamente a mesma em todos os casos. Em algumas a importância cultural e religiosa é maior do que em outras.  

Os grupos dos troncos linguísticos Pano, Aruák e Tukano,  por exemplo, partilham uma filosofia de vida parecida. Eles acreditam que seres humanos, animais e plantas possuem es píritos que podem ser vistos e compreendidos por meio da experiência com a ayahuasca.  

A ideia é de que o nosso mundo, a realidade tal qual a vemos, não acaba em nós, mas se estende também para os outros  organismos vivos da natureza. Somos uma existência equivalente — o que muda é apenas o corpo e a perspectiva de cada  um. As visões proporcionadas pela ayahuasca dão ao indivíduo  (em algumas culturas apenas ao xamã) a capacidade de alternar entre estas perspectivas e entender a conexão que temos  com o “todo”. Deixamos de lado a individualidade para perceber a essência, os espíritos, e ver a realidade na sua forma primária. A forma verdadeira, por assim dizer, que nos é  vedada na sobriedade. 

Essa crença pode ser exemplificada por meio dos Kaxinawá,  de língua Pano, que habitam uma área que vai do pé dos Andes, no  leste peruano, até a Amazônia acreana. Eles acreditam que vivemos apenas o lado ordinário da realidade na vida cotidiana normal. Só ao tomar o nixi pae, nome que dão à ayahuasca, é possível  perceber o plano divino, onde estão os yuxin (espíritos). É lá onde  entramos em contato com o grande espírito Yuxibu, representação máxima da totalidade da existência. Abandonando nossa  individualidade intrínseca, passamos a encarar as demais formas  de vida como huni kuin, gente nossa. Este é o termo utilizado para  denominar o grupo todo, sendo “Kaxinawá” um modo como são  tratados exclusivamente pelos outros. 

“A ayahuasca tem a força do sol”, explica o pajé Tadeu Siã  Txana Hui Bei, da aldeia São Joaquim – Centro de Memória, localizada no Rio Jordão, Acre. “Quando ilumina, não ilumina só  para uma pessoa. Ilumina o planeta e o mundo inteiro.” Para os  Huni Kuin, o poder de iluminação interior vem de um processo  de cura. A ayahuasca é um espírito que funciona como guia e  médico. Mostra o caminho correto, corrige desvios de conduta  e também cura qualquer problema psicológico ou físico. É uma  medicina completa. “Ayahuasca traz uma educação boa: ensina  a não fazer mal para o ser humano e nem para o planeta. Ela  mostra passado, presente e futuro”, completa o pajé, que tive  a oportunidade de entrevistar quando esteve de passagem por  Curitiba. 

Ele viaja pelo Brasil e também pela  Europa desde 2011. Foi escolhido por 34 aldeias da comunidade  dos Huni Kuin para representá-los como líder espiritual. O pai,  Agostinho Ika Muru, tinha sido um grande xamã já bastante  conhecido pelo povo branco. Um dos objetivos das viagens é  divulgar o livro de cura do povo Huni Kuin, Una Isi Kayawa — a  reunião de um profundo conhecimento sobre práticas e plantas medicinais. “Era o sonho do meu pai”, conta.

Em outras comunidades, a medicina possui também características diferentes. Entre os Airo-Pai, de língua Tukano,  acredita-se que os espíritos do outro plano, que está repleto  de monstros, são capazes de dar conhecimento e proteção. É  preciso navegar do outro lado sob o canto do xamã: só assim  é possível ter segurança e sucesso. Os indígenas desse grupo  acreditam que os espíritos têm controle sobre o tempo, então  aproveitam as visões para pedir climas favoráveis que possam  ajudar na colheita.  

Para alguns, a ayahuasca exerce um papel fundamental  também no pós-vida. Um exemplo é o povo Ashaninka, pertencente ao grupo linguístico Aruák. Esses indígenas, presentes em sua maioria no Peru, encaram o kamarampi como um  caminho para a imortalidade. Masinkinti, um tipo de herói  dentro da cosmologia da comunidade, subiu aos céus por ter  feito uso recorrente da medicina e por ter praticado as abstinências necessárias da forma correta — dentre elas, a sexual. A  missão de cada indivíduo é replicar o caminho de Masinkinti e,  assim, alcançar a vida eterna. 

Aqui fica bem clara a questão moral ligada à ayahuasca. Os  efeitos são subjetivos e adaptáveis de acordo com a cultura e  com os códigos morais de cada sociedade. O contexto determina que tipo de experiência a pessoa terá. Entre os indígenas  da Amazônia, são recorrentes as analogias com figuras da floresta, como a jiboia e a onça-pintada. São criaturas que fazem  parte do imaginário coletivo e, portanto, aparecem nos cantos  e se manifestam durante a experiência. Dependendo da bagagem cultural e individual de cada um, a experiência tende a ser  diferente. 

Esse pensamento fica mais palpável se compararmos com  as novas práticas ayahuasqueiras que surgiram pelo Brasil a  partir do século passado. A primeira delas se formou no Acre,  e não poderia ser outro lugar, por volta de 1930. Naquele tempo, vivíamos um período de declínio no ciclo da borracha.  Centenas de seringueiros, muitos vindos das zonas áridas do  nordeste brasileiro, foram forçados a fixar residência em comunidades próximas da floresta, no caso a Amazônia acreana, quando o esforço tremendo e pouco recompensado de retirar  o látex da Hevea não deu mais para colocar o pão na mesa, se é  que tiveram pão ou mesa em algum momento.  

O Santo Daime

Com a introdução de uma perspectiva capitalista de produção, houve uma transformação econômica e social muito  importante em cidades como Rio Branco. Foi exatamente ali  que o primeiro culto do povo branco com a ayahuasca tomou forma. Raimundo Irineu Serra, um desses seringueiros, conheceu a bebida em alguma aldeia indígena e levou para o  contexto ainda em formação da cidade. Ali, combinou-a com  hábitos cristãos quase perdidos, mas ainda muito importantes para boa parte da população cabocla, como o compadrio e as festas para os santos. Foi o primeiro e decisivo contato da  ayahuasca com as bases do cristianismo

O culto desenvolvido por Serra, que depois ficaria conhecido como Mestre Irineu, cresceu rapidamente. Ele fez uma  junção de elementos cristãos, espíritas, umbandistas e indígenas que acabou na consolidação de um ritual extremamente  sincrético. Carente de lideranças religiosas e carismáticas, a  população aderiu. O espírito da ayahuasca, nesse contexto, foi  chamado de Daime (de Santo Daime). Foi o nome pelo qual a  bebida também passou a ser conhecida — a doutrina, para ser  exato, chamava-se Alto Santo.  

Irineu tornou-se uma espécie de conselheiro ou padre, alguém capaz de reunir a comunidade em torno de si. No Daime,  continua a ideia de divisão entre espiritual e terreno, como nas  crenças indígenas, e alma e corpo, como no cristianismo. A  ayahuasca seria uma maneira de atingir o plano sacro de Deus, onde é possível alcançar a salvação. Os daimistas criaram um  conjunto de pensamentos que privilegia o ultraterreno. Algumas atitudes e sentimentos eram depreciados pelo grupo,  como a ingestão de bebidas alcoólicas — assim como no cristianismo. A ayahuasca teria, então, o poder de colocar o indivíduo no caminho certo. O caminho daquilo que está para além  do material.  

Os cantos, chamados hinários, celebram Jesus Cristo e os  demais símbolos cristãos. O formato dos rituais e das hierarquias internas também são elementos incorporados do que  já existia dentro daquele contexto religioso. O ambiente do  Daime, de fato, assemelha-se a uma igreja até os dias de hoje

Barquinha, União do Vegetal e Cefluris

Nos anos seguintes, a influência do Daime determinou o  surgimento de outras três práticas ayahuasqueiras. Em 1945,  Daniel Pereira de Mattos, ex-membro da marinha que dizia ter  sido curado por Irineu, fundou a Barquinha, religião que até  hoje se concentra apenas em parte do Acre. A doutrina, cheia  de elementos marítimos por conta da formação de Mattos, encara o local de culto como uma grande barca que segue ao encontro de Jesus. 

Pouco mais de 15 anos depois, em 1961, o também seringueiro José Gabriel da Costa fincava, em Porto Velho, capital de  Rondônia, as bases já institucionalizadas da União do Vegetal  (UDV). Ele conheceu a ayahuasca, que chamou de vegetal, dentro da floresta dois anos antes e iniciou a prática com os companheiros no Seringal de Guarapari. O culto liderado por ele se  expandiu e rompeu os limites de Rondônia. A UDV,  além de chegar a outros locais do Brasil, foi para América do Norte e Europa. Hoje, conta com 160 unidades e mais de 20 mil  sócios. 

A religião fundada pelo Mestre Gabriel também contém  elementos cristãos, mas é, acima de tudo, inspirada pelo espiritismo de Kardec — estão muito presentes as noções de evolução e reencarnação. Para os praticantes do culto, o ser humano tem por objetivo evoluir intelectualmente até o estágio  puro e máximo do espírito. É por isso que reencarnamos. O  Vegetal seria, portanto, uma fantástica ferramenta para obter  o conhecimento e a força para seguir no caminho do aperfeiçoamento moral

Apesar do viés espírita, a UDV é aberta para pessoas de to dos os credos espirituais e mesmo para quem não acredita em  nada, já que o princípio é da evolução do ser humano como  um todo. Tem gente de todas as classes sociais e com os mais  diversos objetivos e motivos para tomar a bebida. Talvez por  isso tenha feito tanto sucesso entre o público nacional e internacional. 

A última das religiões ayahuasqueiras é o CEFLURIS, sigla para Centro Eclético da Fluente Luz Universal Raimundo Irineu Serra, criado pelo amazonense Sebastião Mota de Melo.  Em 1974, três anos depois da morte de Serra, seu discípulo,  o Padrinho Sebastião, fundou uma nova entidade a partir do  próprio Daime, com pequenas mudanças estruturais e organizacionais. A Cannabis sativa, popular maconha, foi introduzida  no ritual. Pela proximidade ideológica e ritualística, CEFLURIS  e Alto Santo, que continua existindo, são reconhecidos em  conjunto como a doutrina do Santo Daime.  

Pelo mundo

Junto com a UDV, o núcleo do CEFLURIS também foi responsável pela exportação da ayahuasca para o resto do mundo  a partir das décadas de 70 e 80. Lá fora, a substância foi novamente ressignificada — mais ou menos da forma como estas  religiões fizeram aqui no Brasil em relação ao povo indígena.  Claro que há o lado ruim. Como todo conhecimento inserido  na lógica moderna de consumo, este também foi posto à venda pelos adeptos do charlatanismo — desta vez, sob o rótulo  de conhecimento milenar indígena. Carsten Balzer chamou o  fenômeno de mercado das religiões. No caso, o comércio contribuiu para uma série de transformações culturais que ressoaram de volta para cá. 

Na Europa e na América do Norte, principalmente, a  ayahuasca adquiriu uma nova roupagem. Foi englobada pelo  contexto emergente do New Age e de uma consciência religiosa  moderna, que prioriza as experiências subjetivas. Esse contato proporcionou uma proximidade acentuada com conceitos  orientais e com uma filosofia inteira que traz consigo elementos do yoga, da meditação e de terapias e práticas alternativas.  Os aspectos intelectuais, existenciais, políticos e esotéricos  entram em cena.  

O importante é não cair em princípios predispostos, como  acontece dentro de uma religião específica. Para estes grupos,  que receberam o nome genérico de neo-ayahuasqueiros, o objetivo fundamental é de autoconhecimento — e, se a intenção é  olhar para dentro, a ayahuasca é a chave que faltava. Uma ferramenta de reconstrução de identidade extremamente poderosa que pode ser utilizada para nos mostrar outras perspectivas de vida. Se pode mudar os hábitos e os comportamentos individuais, pode transformar, por consequência, a sociedade  e o mundo. 

É esse tipo de pensamento que consolidou as novas formas  de utilização da ayahuasca na modernidade. Hoje, as opções  cerimoniais são múltiplas. Pelo menos aqui no Brasil, pode mos dizer que os contextos ayahuasqueiros são três: o indígena, organizado ou não pelos próprios detentores originais do  conhecimento, o das religiões sincréticas como o Santo Daime  e o dos diversos grupos espirituais neo-ayahuasqueiros.  

As três se colocam como alternativas e oferecem respostas para os males mais comuns dos tempos atuais. E, acredite,  muita gente vai atrás. A ayahuasca ajuda a resolver inúmeros  problemas que a maneira moderna, apressada e estressante de  viver causa em boa parte da população: desde questões existenciais profundas até verdadeiras doenças como depressão  e drogadição. Mas isso não é possível, obviamente, por passe de mágica. A ciência tem algumas explicações.

*Primeiro capítulo do livro-reportagem ‘Os caminhos do cipó: perspectivas sobre o consumo contemporâneo de ayahuasca’ . Acompanhe os próximos aqui no Plural.

Sobre o/a autor/a

1 comentário em “Ayahuasca: os caminhos do cipó”

  1. Tomei ontem pela primeira vez o Daime em um grupo em Minas que segue a doutrina Alto Santo. Foi uma reunião de concentração, com uma serventia da bebida. Após tomar, todos sentávamos em cadeiras e seguia-se uma hora e meia de meditação com olhos fechados ao som de uma música instrumental. Depois desse período eram cantados hinos.

    Comecei a sentir os efeitos cerca de meia hora após a ingestão. Notei uma maior clareza da visão e da audição. Embora eu estivesse com os olhos fechados, eu percebia minhas mãos sobre as coxas e até as mãos das pessoas ao meu lado, principalmente quando faziam algum movimento. Era uma percepção tênue, e desaparecia se eu cerrasse as pálpebras com força, o que fiz pra certificar se não era alucinação visual. Abri os olhos algumas vezes brevemente para confirmar se as imagens correspondiam à realidade. Era visão real! Importante dizer que a luz do salão estava acesa. Eu estava conseguindo obter imagens com a fraca luz que passava por minhas pálpebras fechadas.

    Quanto à audição, notei de repente a música mais alta, e então o ritmo começou a despertar em mim sentimentos que eu tinha quando criança ao ouvir minha mãe cantar cantigas que ela inventava pra mim. Não eram recordações de tais sentimentos, mas uma nova vivência. A mesma ternura com a pureza da infância vivida de novo.

    Por algumas vezes senti como se o espaço à minha frente de deformasse me induzindo a uma postura de reverência, com a cabeça erguida e peito estufado. Era como se algo me levasse automaticamente a tal postura: uma sensação de que havia alguma espécie de altar, ou autoridade, diante de mim, por alguns segundos, mesmo tendo plena consciência de que se tratava de um produto da minha própria mente. Esses momentos me causaram um “ganho de moral”.

    Por fim, hoje caminhei à tarde em torno da Lagoa da Pampulha aqui em Belo Horizonte. Eu sentia uma calma e tinha um sentimento de pertencimento em relação às coisas que me rodeavam. Os sons dos carros me causavam uma impressão agradável. Era um sentimento quase infantil, e que perdemos com as barreiras e desconfianças que criamos como defesas ao longo da vida cotidiana, de que o que está em torno de mim me é acessível e bom. Acho que é uma visão de mundo ingênua ao ocorrer naturalmente na infância, mas que precisa ser revisitada e servir de guia.

    Em suma, até o momento tenho experimentado benefícios psíquicos importantes com a experiência de uma dose do Daime.

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