“As mulheres sofrem com mais amor”

Maurina Carvalho da Silva chegou na Vila Capanema aos 15 anos; desde então, superar desafios e lutar por sua comunidade são tarefas cotidianas

Esta publicação faz parte do Festival de Jornalismo Literário, organizado em parceria pelo Plural e faculdades de jornalismo de Curitiba e Ponta Grossa. Jessica Brasil Skroch é formada pela UFPR

“Diz-se que de uma história triste sempre tem uma coisa bonita. Eu acho que eu sou resultado de tantas histórias tristes, então agora está muito bom.” É assim que começa a história de Maurina Carvalho da Silva, por um final bonito, que continua frondoso, mas que foi regado por algumas lágrimas durante a trajetória. Ainda bem que nasceram flores!

Na visão de Maurina, tudo na vida tem que se resolver a partir da raiz. Não adianta vir de cima para baixo. O problema não está nas folhas, mas na base. E para tratar uma raiz, leva-se um bom tempo. A espera é longa para quem busca modificar uma estrutura. É por isso que ela gosta muito de aprender. Acha que já aprendeu muito, mas que ainda tem chão pela frente. A educação é uma raiz da gente.

Quando era pequena, Maurina teve dificuldades de frequentar a escola no distrito de Ourilândia, região rural do município de Barbosa Ferraz, que fica no Noroeste do Paraná e que tem um pouco mais de 12 mil habitantes. Ela precisava andar cerca de quatro quilômetros no meio do mato porque não havia estrada. Os seus irmãos muitas vezes não podiam ir com ela e seus pais não a deixavam ir sozinha. Ela conseguiu estudar um ano na escola, e ainda assim uma professora precisou escondê-la do município porque não era permitido se matricular sem certidão de nascimento. Quando tinha 12 anos, o seu pai fez as certidões dos oito filhos de uma vez só, para que pudessem estudar. Logo depois, Maurina começou a namorar e se casou. Em seguida vieram os filhos. Os estudos ficariam para depois.

Destino Curitiba

Aos 15 anos, Maurina saiu de Barbosa Ferraz e veio para Curitiba. Trouxe consigo o marido, os dois filhos – um com cinco meses e o outro com um ano de idade – e um primo. Chegou na Capital uma semana depois do famoso dia em que nevou, em 1975, sem roupas de frio. Vieram em busca de um tratamento para um dos pequenos que estava doente. Ficaram na casa de sua cunhada, na Vila do Capanema, até conseguirem montar o próprio barraco. Não tinha água, não tinha luz, não tinha asfalto, não tinha nada. Mas seria feita com muito esmero, na rua da esperança, sem número. A Avenida das Torres, que leva ao aeroporto mais próximo de Curitiba e que depois daria o nome à atual Vila das Torres, também não tinha torre alguma. Nessa vila, mais próxima da área urbanizada da cidade do que as outras áreas de ocupação, existiam até então apenas barro, poças e muitos sapos.

De compensados e caixotes de móveis, Maurina fez o seu puxadinho. Deixavam o material na chuva, envelhecendo e escurecendo, porque se a prefeitura visse que eram novos, o feito estaria dentro da categoria “casa”. E ali não podia fazer casa, uma vez que ninguém tinha a propriedade dos terrenos.

No dia seguinte à sua chegada, o seu filho foi internado. Ele foi doente desde que nasceu. Maurina conta que quando estava grávida levou um tombo com uma lata de água na cabeça e caiu de barriga para baixo. Sentiu o bebê entrando nas suas costelas. Depois que nasceu, ele não parava de chorar. Levaram-no para fazer raio-x em Campo Mourão, que constatou um machucado em suas costas. Após um tempo, o pequeno ficou com meningite, que seria tratada em Curitiba. Porém, a doença complicou e o bebê faleceu no final do mesmo ano. Foi uma época difícil, ainda mais porque era recém-chegada em uma cidade fria, numa vila sem condições adequadas. Porém, ao mesmo tempo, como ainda era muito criança, teve um luto estranho. Pouco tempo depois já engravidou do seu último filho: “Um filho nunca substitui o outro, mas a gente tinha que dar continuidade na vida.”

Ainda menina, Maurina viu o início da luta da comunidade. Tantos problemas a mantiveram sempre ocupada, participando das reuniões entre os moradores. Os afazeres foram preenchendo os vazios e as tristezas de sua cabeça. Um sofrimento ajudou a curar o outro.

A luta pela Vila do Capanema

As freiras Cláudia e Estela, que moravam no Colégio Esperança, se sensibilizaram pela ocupação na Vila Capanema e também fizeram seus barracos. Elas ensinaram o bê-á-bá para os moradores: era preciso fazer uma associação e começar reuniões entre as famílias para reivindicar direitos.

Quando chegou na vila, Maurina conta que havia entre 60 e 70 famílias. Mas era dormir que o dia amanhecia com mais quatro barraquinhos na comunidade. A quantidade de pessoas foi inchando e cada vez mais Maurina se sentia no dever de ajudar. Naquela época, ela conta que a comunidade era muito unida, muito mais do que é hoje.

Atualmente a Vila das Torres está repleta de projetos, “tanta coisa boa que não é mais tão valorizada”, questiona ela. Por trás de todas as melhorias que foram feitas no lugar com o passar dos anos, existiu muita resistência e determinação que muitas vezes não é reconhecida, e isso a incomoda um tanto.

Maurina sentia muita vontade de participar da Associação de Moradores, mas o seu marido não deixava. Ficou só participando das reuniões por um tempo. Depois, não teve jeito, como ela conta, teve que entrar para a Associação e participar mais de perto da luta. Participou como membro duas ou três vezes, não sabe ao certo, porque sempre esteve lutando junto. Uma vez, inclusive, participou de uma chapa só com mulheres, que perderam por 23 votos.

No final da década de 1980, a Vila das Torres, uma comunidade apêndice da Vila do Capanema, e que se chamava Vila Pinto, começou a passar pelo processo de regularização fundiária e urbanização. Na época, as 767 famílias cadastradas pela Cohab conseguiram um pedaço de terra para comprar e chamar de seu. Ainda assim, os serviços básicos demoraram um pouco mais para serem instalados na vila.

Antes do saneamento básico chegar, Maurina lembra que água tinha que ser buscada no Hospital da Polícia Militar. Acordavam às três horas da manhã para buscar a água que passariam o dia todo, na cozinha, no banho, na limpeza. Se os moleques da vila fizessem bagunça, o coronel fechava a torneira e as famílias ficavam sem água. Depois, quando veio a água para a comunidade, era só uma rede. Assim como a luz, os vizinhos iam puxando os rabichos. “Na minha casa eu lembro que tinha umas 20 pessoas usando o mesmo poste de luz”, lembra Maurina. Se todos resolvessem tomar banho ao mesmo tempo, a luz caía.

Maurina conta a história da vila rindo, mas recorda que foi muito sofrido. As coisas foram mudando, as ruas alargando, se organizando, as casas foram sendo construídas com alvenaria, as condições melhorando. Porém, ainda tem muita coisa que ela gostaria que fosse diferente. Por isso, nunca parou de lutar.

Ostra feliz não faz pérola

Maurina trabalhou muito como empregada doméstica. Tinha hora para entrar, mas não tinha hora para sair. Além do trabalho pesado, sofreu muitas humilhações das patroas. Mais uma vez em sua vida, de uma coisa ruim, Maurina tirou uma coisa boa.

Ainda que os seus pais não tivessem muito estudo, sempre incentivaram os filhos a estudarem. Era a maneira de “vencer na vida”. Porém, depois que casou e teve filhos, Maurina tinha que ajudar no sustento da família e não pôde mais frequentar a escola. Estudar e quem sabe se formar era uma das suas metas de vida.

Na correria de trabalhar e deixar os pequenos sozinhos em casa, descobriu que o seu filho mais novo, com 12 anos de idade, estava usando drogas e matando as aulas no colégio. Foi um momento muito triste. Mãe protetora e cuidadora, ficou arrasada, mas tinha que fazer alguma coisa pela sua cria.

Quando voltou para a escola, com 35 anos, Maurina era só alfabetizada. Depois que terminou o Ensino Médio, ainda fez Magistério numa faculdade particular. “Investi um pouquinho em mim pela primeira vez”, diz ela. Trabalhava de dia e estudava à noite. Chegava em casa, fazia a janta e trocava de roupa para sair de novo e ir estudar. Às vezes não tinha tempo nem de tomar banho. Para piorar, o marido bravo. Ele nunca apoiou os seus estudos. Hoje, Maurina diz que entende. Mas na época, não se deixou abalar.

Ainda entrou para o curso de graduação em Serviço Social, concluiu, e fez curso técnico em Reabilitação em Dependência Química na Universidade Federal do Paraná. Atualmente, Maurina está cursando a especialização em Terapia e Assessoria da Família e do Casal na Abordagem Sistêmica, uma formação que ela pretende usar para fazer trabalho voluntário com as famílias da Vila Torres. Afinal, é pela raiz que se resolvem os problemas. A família é uma raiz da gente.

Vendo todas as dificuldades com o seu filho dependente químico, Maurina resolveu entrar para o Conselho Tutelar. Assim, ela imaginava que poderia cumprir com o seu objetivo de ajudar tanto a comunidade, como o seu filho. Não conseguiu curar a dependência química dele, mas ficou até agora 5 mandatos atuando junto a sua comunidade como conselheira, auxiliando famílias em situação de vulnerabilidade. Um trabalho que sempre gostou muito.

Passos da Criança

Quando já era conselheira, em 2004, Maurina recebeu um convite. Adilson Pereira de Souza – um homem que já tinha estado em situação de rua quando era muito jovem e que foi acolhido pela Chácara Meninos de 4 Pinheiros (uma organização não governamental que busca dar assistência e educação integral às crianças e adolescentes em situação de risco e vulnerabilidade social) – perguntou se ela não gostaria de fundar uma ONG junto com ele para os jovens da Vila Torres. Assim, Maurina se tornou uma das fundadoras da Associação Iniciativa Cultural Passos da Criança, que hoje realiza atividades de reforço escolar, arte e cultura para 62 crianças e adolescentes da comunidade.

Maurina tem muito orgulho da Passos. Com uma equipe interdisciplinar, ela acredita que a ONG é fundamental para a educação dos jovens na vila. Percussão, danças, teatro, musicoterapia, esportes, vários eventos, tudo isso contribui para a qualidade de vida das crianças e adolescentes que participam, segundo ela. “Eu trabalho com educação porque uma sociedade que é educada é uma sociedade que não é marginalizada. Ela não se deixa marginalizar”, completa.

Ainda que tenha visto a organização nascer, Maurina nunca quis trabalhar lá sendo remunerada, apesar dos vários convites. Para ela não faz sentido ganhar o seu pão com a ONG, um recurso que poderia ser direcionado para outras pessoas. Enquanto é conselheira tutelar, ela observa, cuida, participa de algumas reuniões, conversa com Adilson e com os voluntários. Quando “se aposentar” do Conselho Tutelar, Maurina diz que voltará a ser voluntária da Passos da Criança.

Na rotina

Não é só no Conselho Tutelar que Maurina atua pela sua comunidade. Na igreja, participa dos grupos de oração e é catequista. Na saúde, é presidente do Conselho de Saúde Local e atua também nos Conselhos Distrital e Municipal. Na educação, fez de tudo para que o Colégio Estadual Manoel Ribas – que fica dentro na vila – não fechasse por conta das complicadas condições de trabalho dos professores e do preconceito dos pais, que acreditavam na frase “manecão, quem entra bom sai ladrão”.

Nas casas, realiza visitas às famílias que estão com dificuldades ou com alguma pessoa adoentada. Em tudo que diz respeito à vila, participa da Rede de Integração, que reivindica melhores condições em todas as áreas junto às instâncias públicas.

Por todo o trabalho de Maurina, as pessoas não saem da sua porta. Ela não sossega nunca e, quando para, logo uma nova demanda chega. “Às vezes eu vivo mais pela comunidade do que para mim mesma, para a minha família.”

O propósito dela é exatamente esse: “A gente está de passagem, viemos para o mundo para fazer as pessoas felizes. E, quando procuramos fazer os outros felizes, Deus dá a felicidade no nosso coração”. O seu trabalho nunca foi para “aparecer”, como dizem alguns que se incomodam com a sua atuação na comunidade. Nem dinheiro, nem tapete vermelho, para Maurina basta estar com a consciência tranquila.

Ela é resistente, como já deu para perceber. Nunca está satisfeita, sempre quer buscar mais, ir além. Se ela coloca algo na cabeça, vai lá e faz. Pode levar anos, como foram os seus estudos. Ou quando tirou a carteira de motorista após um ano de autoescola, e depois logo perdeu a carteira provisória e teve que fazer todo o processo de novo por mais três anos. Diz ela que é “mais teimosa do que poderosa”. Tudo bem o resultado ser a longo prazo, se for eficiente.

Antes de saber os nomes técnicos da sua atuação, Maurina já fazia um trabalho muito parecido com o que faz hoje no Conselho Tutelar. A necessidade, muitas vezes, dispensa teoria.

No seu trabalho, reclama que a maior dificuldade é a falta de Políticas Públicas que atendam às necessidades da população. “Sem a ação do poder público não tem como a comunidade se estabelecer e ter educação, saneamento básico, moradia”, explica. Para ela, muitas conquistas acabam sendo paliativas e superficiais. Mas Maurina busca a raiz da questão. Numa vila as coisas precisam ter consistência, porém falta vontade política. 

Outra coisa que a incomoda são as pessoas que usam da fragilidade da comunidade para a má-fé. Organizações que dizem fazer pela vila, mas que ganham em cima dos trabalhos. Partidos políticos que tiram proveito do sofrimento das pessoas. Tem coisas que ela não pode nem comentar para não sofrer ameaças no seu próprio trabalho.

Muita gente já tentou impedir o florescimento de Maurina. Na última campanha para o Conselho Tutelar, candidatos na vila tentaram usar da dependência química de seu filho para desvalorizar sua luta. Ela fica triste, mas não magoada. “Podia falar que eu sou gorda, negra, magra, feia, menos isso. Mas eu tenho pena, é uma pessoa pobre de espírito”, lamenta.

Maurina fortaleceu suas raízes. Hoje, depois de tudo o que viveu, as dificuldades são mais fáceis de lidar.

Toda mulher é Maria

Perguntei se ela se considerava uma liderança na comunidade. Maurina me respondeu que não, porque é “uma pessoa normal”. A diferença é que ela se coloca no lugar das sofredoras, das catadoras, das empregadas domésticas, das pobres, das negras, das violentadas, de todas elas. Ela, também, é uma mãe sofredora.

Mas ela não nega a sua força, ainda que pense que é mais teimosia do que qualquer outra coisa. É que a mulher, para Maurina, já nasceu poderosa. Porque a mulher “sofre com mais amor”.

Amanhã

“As pessoas sempre falam que não têm tempo, mas quem faz o tempo é a gente. Se a gente espera, o tempo nunca chega.” Uma hora ou outra o tempo virá, é o que ela acredita. As coisas se encaixam e dá tempo de fazer e aprender muita coisa na vida. Maurina fica empolgada com todas as possibilidades que o mundo tem. Ela ainda quer viver muito e alcançar todas as suas metas.

Depois que fizer mais um mandato no Conselho Tutelar, quer descansar um pouco. Ela vai fazer trabalho voluntário, cuidar da ONG que ajudou a fundar e ficar mais próxima da sua família, cuidar da casa na Vila das Torres e na casinha que está fazendo na praia. Outro desejo é o de terminar o seu curso de especialização e qualificar o trabalho na comunidade. Devota de Nossa Senhora, o sonho de Maurina mesmo é viajar para Fátima, em Portugal. Diz que vai ter que fazer seis pontos na Mega Sena antes. Mas, quem sabe um dia?

Depois de tantos “nãos”, nada mais segura a determinação, coragem e teimosia de Maurina.

*Esta é a quarta e última parte da publicação, pelo Plural, do projeto Mulheres da Vila

Sobre o/a autor/a

2 comentários em ““As mulheres sofrem com mais amor””

  1. Exelente artigo, conheço Maurina sua família e seu trabalho, não conhecia toda sua história, é uma grande mulher. Parabéns pela reportagem.

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