“Sexo ignorado” na certidão de nascimento é avanço ou retrocesso?

Cartórios do Paraná estão autorizados a registrar crianças sem uma definição binária de sexo, mas a medida é temporária e insuficiente

Em dezembro do ano passado, a Corregedoria-Geral da Justiça do Paraná (CGJ-PR) publicou o Provimento nº 292/2019, que autoriza os cartórios do Estado a registrar crianças nascidas com o que o documento chama de “Anomalia de Diferenciação de Sexo (ADS)” com “sexo ignorado” na certidão de nascimento. Segundo dados do Instituto do Registro Civil das Pessoas Naturais do Estado do Paraná (Irpen/PR), de lá para cá foram seis bebês registrados dessa forma.

O Paraná foi o segundo a regulamentar a questão – o pioneiro foi o Rio Grande do Sul. Antes os cartórios não podiam expedir a certidão de nascimento se não constasse uma definição binária de sexo na Declaração de Nascido Vivo (DNV). Aí a família precisava entrar com um processo judicial para registrar a criança e, enquanto isso, ela ficava sem o documento – ou seja, sem acesso a direitos fundamentais como plano de saúde, matrícula em creche, entre outros serviços públicos e privados.

Mas o que parece uma conquista ainda tem ares de retrocesso. Após o registro sem identificação de sexo, os responsáveis têm até 90 dias para comparecer ao mesmo cartório para acrescentar um sexo – feminino ou masculino – ao documento do bebê. É preciso levar um laudo médico que especifique a qual sexo ele pertence (definição que, em grande parte das vezes, passa por intervenções cirúrgicas).

Segundo o Irphen, caso a “retificação de sexo” não seja feita dentro do prazo, o oficial de Registro Civil deve informar ao Ministério Público “para que eventuais providências sejam tomadas, a fim de garantir o bem estar da criança”. Na exposição de motivos da Resolução n° 1664/2003 do Conselho Federal de Medicina, consta que “o nascimento de crianças com sexo indeterminado é uma urgência biológica e social“.

O Ministério Público do Paraná (MP-PR) afirma que ao receber essas comunicações enviadas pelo Registrador Civil, notifica os genitores/responsáveis para análise dos motivos pelos quais houve o que o órgão chama de “inércia na retificação do registro da criança”. Depois ele atua para que seja realizado o “exame cabível e posterior retificação administrativa do registro de nascimento”.

“Mas como você vai saber o sexo psíquico de um bebê?”, questiona Dionne Freitas, diretora consultora de saúde da Aliança Brasileira Intersexo (ABRAI). “A principal importância dessas crianças não serem registradas de forma binária é, na verdade, protegê-las de cirurgias desnecessárias. A criança intersexo precisa de acompanhamento psicológico e social, não de intervenções cirúrgicas. Cirurgias só são necessárias quando há risco de vida.”

Violação de direitos

Intersexo é alguém que nasce com características biológicas dos sexos feminino e masculino. “Existem vários graus de ambiguidade, é preciso observar cromossomos, genes, hormônios, gônada, genitália…”, diz Dionne, apontando que uma a cada 100 pessoas vem ao mundo assim. Mas o despreparo dos próprios profissionais de saúde produz subnotificação: na base do DataSUS, há registro de apenas 31 crianças com sexo indeterminado nascidas no Paraná entre 2007 e 2017.

Agora imagine o seguinte: uma criança nasce com a “genitália ambígua” e os pais escolhem “adequá-la” ao sexo feminino, por meio de cirurgias, mas na adolescência ela se identifica com o gênero masculino. O que acontece? “Ela pode ter perdido tecido para construir um pênis ou pode ter perdido a fertilidade. Isso é uma violação dos direitos sexuais e reprodutivos dessa pessoa.”

Dionne fala como profissional de saúde, pesquisadora e ativista, mas também como alguém que viveu essa experiência na pele. “Eu nasci em Faxinal, no interior do Paraná, em 1989. Vim com pequenas alterações na genitália, mas fui registrada sob o sexo masculino porque, para os médicos, era o que aparentava. Fui criada como homem e sofri muito preconceito por não atender aos padrões masculinos.”

Dionne também é ativista da Aliança Nacional LGBTI. Foto: arquivo pessoal

Com o passar do tempo ela compreendeu que desejava transicionar, mas o caminho foi turbulento. “Eu precisava fazer tratamento hormonal, mas não queria fazer o masculino. Foi uma dificuldade enorme encontrar um médico para prescrever o que eu desejava, mesmo que os meus pais concordassem, porque não condizia com a minha certidão. Veja o tamanho da intromissão no corpo da pessoa intersexo.”

Para não ser forçada a continuar afirmando um gênero com o qual não se identificava, ela optou pela automedicação, expondo-se a riscos. “E mesmo assim levei 20 anos para conseguir alterar meus documentos. Para ser reconhecida como mulher pelo Estado, tive que chegar à maioridade para poder passar por uma cirurgia que foi altamente burocratizada.”

Enquanto isso, cirurgias de afirmação de gênero, como muitas vezes é o caso do implante de silicone nas mamas, são despatologizadas e podem ser feitas em mulheres cisgêneras de 16 anos, quando autorizadas pelos responsáveis. Dentro de um contexto social endosexo-hétero-cis-normativo, esse tipo de procedimento não é visto com estranhamento.

É por essas e outras que, hoje, Dionne vai à luta. “Muitos acham que só existem homens e mulheres. Vemos esse tipo de colocação até em slogan de político. Mas quem nasce fora dessa lógica binária não é humano, não existe? Eu me reconheço como mulher, mas há quem se identifique com ambos os sexos, e aí?”

Não há “anomalia”

As críticas do movimento intersexo também se estendem às terminologias adotadas pelo Estado, começando pelo tal “sexo ignorado” na certidão de nascimento. “Não é o ideal. Você está ignorando a condição biológica dessa criança, ela é intersexo ou sexo diverso”, defende Dionne.

Outro equívoco comum é falar em “anomalia”. “O Conselho Federal de Medicina (CFM) não atualizou a resolução de 2003, que ainda adota essa terminologia, e por consequência é o que ensinam nas escolas de Medicina. Também há quem fale em ‘distúrbio’ ou ‘desordem’, atrelando erroneamente a intersexualidade a uma comorbidade.”

A ativista pontua que o movimento vem cobrando o CFM, mas os profissionais também precisam buscar atualização para oferecer um tratamento mais humanizado. “Agora nós falamos em Diferença do Desenvolvimento do Sexo. É o termo mais atual, reconhecido pela Organização das Nações Unidas (ONU).”

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