Thomas Bernhard devassa a alma dos políticos em “O presidente”

Peça "O presidente" foi traduzida e lançada pela Editora da Universidade Federal do Paraná

A primeira-dama está de luto, num quarto, se preparando para um funeral. Mais um funeral. As autoridades do país estão sendo dizimadas por um grupo terrorista. Na verdade, o luto dela é um tanto patético: embora esteja preocupada, claro (no último atentado o alvo era o marido, o presidente), ela segue sendo frívola como sempre. E sua verdadeira dor é pelo cachorrinho de colo que morreu como vítima colateral do ataque terrorista.

A primeira cena da peça “O presidente”, de Thomas Bernhard, publicado pela Editora da Universidade Federal do Paraná, se dá nesse quarto, nesse momento estranho de um luto que te faz sentir mais repulsa do enlutado do que simpatia por ele. A primeira-dama, que fala sem que a criada responda muito, é uma personagem surreal – e ao mesmo tempo muito familiar.

Thomas Bernhard

Tudo na peça é político. Embora não fique claro em nenhum momento se você não souber disso, a referência de fundo é ao grupo Fração do Exército Vermelho, mais conhecido como Baader-Meinhof, uma milícia terrorista que por décadas matou autoridades na Alemanha Ocidental em nome de uma ideologia de extrema esquerda. A primeira encenação, explica o prefácio, aconteceu no dia em que começou o julgamento dos terroristas.

“Bernhard é um dos maiores escritores austríacos do século 20 e tem um público grande em várias partes do mundo”, diz Rodrigo Gonçalves, diretor da editora. “Seus romances já eram mais conhecidos no Brasil, mas as peças tinham poucas traduções disponíveis.” Além dessa, a editora estuda o lançamento de mais duas obras dele para o teatro.

O presidente

A tradução, aliás, chama a atenção. Feita a quatro mãos por Gisele Eberspächer e Paulo Rogério Pacheco Jr., a transposição para o português enfrenta alguns desafios. Um deles, o texto conciso, ao mesmo tempo poético e quebrado de Bernhard.

“A estrutura provavelmente foi a maior dificuldade”, diz Gisele. “Bernhard quebra as suas frases em versos, o que dá um ritmo muito diferente à leitura do texto. Mas o alemão tem uma estrutura sintática diferente do português, o que cria efeitos diferentes (como identificar de qual frase é determinado pedaço ou ainda perceber que uma frase é uma pergunta pela inversão da posição do verbo). Conseguir criar estruturas, pausas e ambiguidades desse tipo foi um desafio muito grande”, diz a tradutora.

Entrelinhas

O texto ousado e a forma para lá de inusitada (praticamente uma série de monólogos em situações informais: a primeira-dama no quarto, o presidente num bar com a amante) são um contraponto ao que poderia ser uma obra “meramente política”, “militante” no sentido mais banal. A veia artística de Bernhard faz com que o modo de contar a história se torne tão atraente quanto a própria trama, que só aparece nas entrelinhas.

O fato de não haver referências tão diretas à Áustria ou ao período tornam a peça mais atemporal. E mais universal. “É uma crítica às estruturas de poder, e o que é necessário para se manter nelas – e quem são essas pessoas que aceitam isso (e por quais motivos)”, diz Gisele. “Como se revela, o motivo não é um bem público ou uma vontade de governar, mas sim a manutenção do poder. E acredito que o texto vale para o leitor de hoje justamente por isso.”

1975, hoje

“O texto é impressionante”, diz Rodrigo Gonçalves. “O ritmo das falas, o silêncio constante dos interlocutores do Presidente e da Primeira-Dama, as repetições… A aparente banalidade dos temas e das conversas mascaram críticas constantes à universidade, ao conhecimento acadêmico, à dissensão política, à imprensa, e acabam construindo retratos tragicômicos de figuras que detêm o poder em meio à paranoia constante que leva ao autoritarismo. Essa é uma peça austríaca de 1975 que parece falar tão bem com os dias atuais em muitos lugares, inclusive o Brasil.”

Livro

“O presidente”, de Thomas Bernhard. Tradução de Gisele Eberspächer e Paulo Rogério Pacheco Jr. Editora da UFPR, 195 páginas, R$ 40.

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