Governo do PR pede reintegração de terreno na RMC e pode deixar 5 mil nas ruas

Mil famílias da Ocupação Nova Esperança não têm para onde ir; frente de conciliação pede que poder público assuma responsabilidade

O destino de cinco mil pessoas que formam a maior ocupação urbana do Paraná – entre elas milhares de crianças, idosos, migrantes e refugiados – está nas mãos da Justiça. Uma ação movida pelo governo do Estado pede a reintegração de posse de uma área pública em Campo Magro, na região metropolitana de Curitiba (RMC), onde as cerca de 1,1 famílias desabrigadas passaram a viver durante a pandemia. Correndo há meses, o litígio já coleciona um vai e vem de decisões. Não fossem os recursos e os esforços por conciliação, a medida teria mandado os assentados para a rua no auge da maior crise sanitária mundial dos últimos 100 anos.

No centro do dilema está um terreno de 42 alqueires que, por décadas, abrigou a Fazenda Solidariedade, unidade de tratamento de dependentes químicos da Fundação de Ação Social (FAS) de Curitiba. Os atendimentos foram encerrados em 2009 e, em 2013, a FAS cedeu por 20 anos o uso da área para projetos da atual Secretaria de Estado da Justiça, Família e Trabalho (Sejuf). Os planos nunca saíram do papel, e o imóvel, a menos de 500 metros da prefeitura de Campo Magro, ficou sem qualquer destino social – até a chegada dos primeiros moradores da ocupação, em maio deste ano.

De diversas partes da RMC, inclusive de Curitiba, famílias que ficaram sem dinheiro para o aluguel em meio à crise gerada pelo coronavírus começaram a se estender por lotes imaginários. A ocupação, chamada de Nova Esperança, tomou corpo e, em junho, a prefeitura de Campo Magro solicitou providências ao governo do Paraná, alegando danos ambientais e aglomerações proibidas pelo decreto estadual que regra as medidas contra a pandemia. A resposta veio em forma de pedido de reintegração do terreno, em ação que tramita na 2ª Vara da Fazenda Pública de Almirante Tamandaré.

Entre liminares, recursos e audiências de conciliação, o Estado já acumula, até agora, duas decisões favoráveis. Com a alegação de que o decreto do Tribunal de Justiça (TJPR) que suspendeu o cumprimento de ordens de reintegração de posse enquanto durar a pandemia só contempla núcleos coletivos anteriores à diretriz, o primeiro despacho oportuno ao governo saiu no dia 29 de junho, quando o Paraná chegava a 600 mortos pela Covid-19.

Assinado pelo juiz Alexandre Van Der Broocke, a sentença levou em conta o aumento de moradores na área, na contramão do estabelecido em acordo anterior entre as partes e que, na visão do magistrado, poderia agravar o contexto de emergência sanitária. A ordem foi suspensa em instância superior, mas novo pedido levou à determinação, pelo mesmo juiz, do cumprimento da sentença, contra a qual a Defensoria Pública do Paraná (DPPR) recorreu.

A liminar deferida pela desembargadora Denise Krüger Pereira não suspendeu os efeitos da reintegração, mas estendeu de 15 para 90 dias o prazo para a desocupação voluntária do imóvel. Agora, moradores e uma frente de conciliação formada pela Comissão de Conflitos Fundiários do TJPR, pelo Ministério Público (MPPR) e pela Defensoria Pública corre contra o tempo para encontrarem uma solução e evitar o que é entendimento comum: o despejo sem responsabilização, que ao invés de sanar, apenas mudaria o problema de endereço.

Fotos: Movimento Popular por Moradia (MPM)

Sem opções

“Todo dia dormimos com medo e, ao mesmo tempo, com a esperança de ficar. A gente já imagina a polícia entrando e tirando todo mundo. Minha família, como muita gente aqui, não tem para onde ir. Se isso acontecer, eu vou morar embaixo de uma ponte, numa praça. Essa é a realidade”, diz Juliana dos Santos Inácio, de 35 anos, uma das primeiras moradoras a chegar no terreno. “Ir para Curitiba não dá porque lá os abrigos são limitados.”

Diarista desempregada, Juliana e sete de seus oito filhos vivem em uma das estruturas erguidas no tempo da Fazenda Solidariedade. O imóvel é de tijolos, pequeno e precário; foi corroído com o tempo e pelo abandono. Mas conforto não é a prioridade da mãe, que teve de sair de uma casa em que pagava R$ 450 por mês de aluguel por não ter mais dinheiro. Do auxílio-emergencial, conseguiu apenas as três primeiras parcelas, e do marido que foi embora não recebe ajuda desde o fim do ano passado. 

Entre a comunidade que se formou, pequenos atos de solidariedade, como a xícara de arroz emprestada e roupas doadas, também fazem a diferença. Mas, como muitos de seus vizinhos, a ajuda maior vem do kit alimentação que os filhos recebem nas escolas. Hoje, das 5 mil pessoas que lá moram, metade são crianças, aponta a Defensoria Pública.

A Ocupação Nova Esperança tem ainda um perfil distinto das demais espalhadas pelo Paraná. Nela, vivem cerca de 1,7 mil refugiados e migrantes haitianos – o que equivale a um terço dos moradores do local. Assim como as 18 famílias cubanas e alguns venezuelanos que também montaram seus casebres no terreno, eles vivem sem qualquer outra referência de endereço no Brasil.

Conciliação

“Não existe uma outra opção para essas pessoas. Tem gente aqui que, se tiver que sair, tem como buscar outro lugar, mesmo que não seja dele. Isso já é difícil, agora imagina quem é de fora. Eu fico imaginando se fosse a gente no país deles, sem falar a língua, sem conhecer ninguém. Essas pessoas não têm casa, não têm para onde ir”, observa Valdecir Ferreira da Silva, 43 anos, um dos coordenadores da ocupação e integrante do Movimento Popular por Moradia (MPM).

Para evitar o desfecho sem garantir destino certo às famílias, além da Defensoria Pública, o MPPR e a Comissão de Conflitos Fundiários do TJPR também acompanham de perto o processo. Na quinta-feira (8), representantes desses órgãos fizeram uma visita ao terreno para buscar informações e ganhar argumentos na tentativa de estabelecer uma possível conciliação.

Presidente da Comissão de Conflitos Fundiários, o desembargador Fernando Prazeres explica que os próximos 90 dias serão de muito trabalho para impedir que o cumprimento da sentença ocorra em um cenário de violência, com resistência de ocupantes por um lado e emprego da força policial por outro. Por isso, a comissão trabalha para estudar alternativas que superem os tradicionais “modelos” de ações de reintegração de posse, tentando assegurar que o destino das famílias não seja ignorado pelo poder público.

“A comissão nunca vai questionar o mérito da decisão do juiz, em hipótese nenhuma. O que a gente quer é minimizar as consequências dessa decisão”, ressalta o desembargador. “Nossa preocupação é desalojar essas pessoas e não dar um destino adequada para elas. A gente não quer resolver um problema e criar centenas de outros tantos.”

Segundo o desembargador, a hipótese de o processo seguir para uma possível permanência dos moradores no local existe, mas é mais difícil. A promotora Mariana Dias, representante do Ministério Público no processo de mediação, diz que a pauta não está, certamente, fora das conversas que devem acontecer daqui pra frente.

“O ideal seria que houvesse uma predisposição do Poder Executivo para construir lá um núcleo urbanizado, de moradias populares. Mas isso é uma questão que a gente vai tentar conversar. A preocupação é que, se for para cumprir a reintegração, o Estado, que é quem está pedindo para cumprir, apresente um plano para encaminhamento dessas famílias, se não a gente vai só trocar a discussão de lugar”, reforça a promotora.

Terreno tem 42 alqueires. Foto: MPM

Viabilidade

O avançar das conversas não depende, no entanto, apenas de manifestações positivas do governo estadual e da FAS, proprietária legal do imóvel. Discussões sobre a transformação do terreno em um projeto de moradia urbana popular também exigem estudos técnicos capazes de atestar a viabilidade da proposta no contexto ambiental, já que se trata de um terreno de larga extensão.

O levantamento será feito por profissionais da Universidade Federal do Paraná (UFPR), com o Centro de Estudos em Planejamento e Políticas Urbanas (CEPPUR) à frente. O objetivo é múltiplo, e vai desde a identificação das características gerais do local até o levantamento de possíveis trechos de Área de Preservação Permanente (APP) e da qualidade ambiental da área, que deverá ser analisada de acordo com as condições e políticas urbanas que a cercam.

De acordo com a defensora pública Olenka Lins, a característica prolonga o debate, mas está longe de significar um ponto final no processo. A saída estaria na própria lei que trata da regularização fundiária urbana no país (Reurb), a qual subordina o direito à moradia da população de baixa renda à elaboração de levantamentos técnicos que justifiquem as melhorias ambientais, inclusive por meio de compensações.

“Se o poder público quiser, ele pode organizar, projetar de maneira que as pessoas vivam em harmonia com a natureza, num contexto de sustentabilidade ambiental”, salienta Lins, coordenadora do Núcleo Itinerante das Questões Fundiárias e Urbanísticas (Nufurb) da Defensoria Pública do PR.

Nesse sentido, a própria comunidade já trabalha para evitar impactos maiores. Sem acesso ao sistema de coleta e tratamento de esgoto, a ocupação começou a receber fossas biodigestoras que coletam dejetos ao mesmo tempo em que produzem gás utilizável nos fogões. Em frente aos casebres, espalham-se hortas que ajudam na alimentação diária dos moradores e, com a ajuda dos voluntários, áreas de proteção ambiental mais visíveis já foram identificadas e isoladas.

“O que a gente quer não é só ficar aqui, mas trabalhar para transformar esse espaço em 100% sustentável e que ajude de outras formas. Ajudamos as pessoas a conquistar sua casa e, ao mesmo tempo, transformar esse terreno abandonado em uma grande área de produção de alimentos, alimentos que saiam daqui e cheguem a outras pessoas que precisam”, planeja Ricardo Martins, 35 anos, um dos coordenadores da ocupação.

Representante das famílias no processo, a defensora pública reitera a necessidade de que sejam apresentadas e discutidas alternativas habitacionais para os moradores, mas que há elementos para se discutir a transformação da ocupação em moradias fixas – o que continua sendo a esperança de muita gente.

“Lamenta-se muito que essa seja uma ação movida pelo poder público, que tem o dever constitucional de fornecer moradia, de efetivar o direito à moradia, que é um direito social fundamental. O que muitos não param para pensar é que se essas pessoas estão nesse local, eu posso garantir que não é porque querem estar. Se elas tivessem a possiblidade de morar na Ecoville, por exemplo, você acha sinceramente que elas iriam para uma ocupação? Não. Elas vão para lá porque é o que sobra”, avalia Olenka Lins.

Delimitação feita pelos próprios moradores. Foto: MPM

O poder público

A prefeitura de Campo Magro se omitiu de comentar o processo e a condição atual e futura das famílias que formam a ocupação.

Sobre o terreno, especificamente, a FAS disse ter solicitado a devolução em 2017, mas com melhorias, já que uma análise teria indicado a deterioração do imóvel. Conforme a pasta, “como essa condição não foi cumprida, o imóvel continua sob a responsabilidade do Governo do Estado”.

A Procuradoria-Geral do Estado (PGE), que representa os interesses do governo, não se manifestou formalmente, mas respondeu a alguns questionamentos feitos pela reportagem. Segundo o órgão, como a ordem de desocupação permanece vigente, “não existe interesse por parte do Estado do Paraná na permanência dos ocupantes no imóvel”.

Sobre o destino das famílias, o governo alega não ter responsabilidade e defende que o acompanhamento dos moradores “é obrigação constitucional do Município e da União, sendo que o Estado do Paraná poderá unicamente providenciar o cadastro das famílias para programas habitacionais, devidamente respeitada a ordem das pessoas já cadastradas anteriormente”.

No entanto, o desembargador Fernando Prazeres, presidente da Comissão de Conflitos Fundiários do TJPR, lembra que o perfil dos moradores que integram a Ocupação Nova Esperança não se adequa à atual realidade contemplada pelos programas habitacionais ofertados pelo poder público. “Programas como a Cohab [Companhia de Habitação Popular] não as atendem porque essas pessoas não têm renda suficiente para fazer frente aos deveres exigidos por esses programas. Para a Cohab, essas pessoas não existem. Então, elas não têm alternativa”, finaliza.

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3 comentários em “Governo do PR pede reintegração de terreno na RMC e pode deixar 5 mil nas ruas”

  1. Ofereça a ele um apartamento no Batel!! Isso ai é um absurdo, o governo não é oai de ninguém! Não conheço pobre, conheço vagabundo! Quase todos ai são oportunistas, porque não vão para outros estado que ainda tem terras devolutas? querem tudo se aglomerar nas capitais e estados do Sul!

  2. Boa noite,a ocupação já fez um ano de moradia.
    Gostaria de saber a atual situação ,dos moradores continuarem no local.ja fez um ano da nova esperança, existe esperança aos moradores, nesse momento.obrigada

  3. Da excelente matéria destaco o seguinte: “ficou sem qualquer destino social – até a chegada dos primeiros moradores da ocupação”. A situação era de abandono total, mas quando os pobres ocuparam, ato contínuo “passaram a incomodar” o omisso e reacionário Prefeito de Campo Magro. E o gestor Ratinho “tira o corpo fora”. É revoltante ver que o Executivo se omite e que quem está buscando uma solução conciliada sejam os demais entes. Se a propriedade é da FAS, é de se indagar se o Estado do Paraná tem legitimidade para pedir a reintegração de posse? Por fim, se cumprida a reintegração de posse a área volta ao abandono e a pertencer aos ratos, enquanto os seres humanos ficam ao relento. Quanta insensibilidade.

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