Cada pontinho, um cafuné

Os pontos contam a minha história, enfeitam a minha casa, afagam a quem eu amo e me colocam no prumo

Quando eu era criança, eu via minha mãe abrir uma mala antiga de lembranças e nela havia um bilro. Era um objeto curioso, de madeira, com a aparência que lembrava um cachimbo. Perguntei para ela o que era e ela me contou que eu tinha uma bisavó rendeira e que aquele artefato era a única lembrança da avó dela.

Um dia, na casa da minha madrinha, irmã de minha mãe, ela me mostrou um paninho de renda de bilro, feito pela vó Doninha. Minha madrinha guardava aquilo com muito cuidado, também a única lembrança que ela tinha da minha bisavó.

Meu pai tinha uma única irmã. Morava em São Paulo e num encontro de família ela veio com um saquinho de tecido, que continha algumas toalhinhas muito delicadas, feitas de crochê. Ela disse: eu ganhei da sua avó Maria, mãe da sua mãe, quando eu fiz 15 anos. Foi ela quem fez e isso é seu, é sua história, tem que ficar com você.

Naquele momento eu não tinha a menor ideia da dimensão desse saber passado de mulher para mulher de minha família, de mão em mão para minha vida e de como ele ressignificaria tanta coisa para mim.

Minha mãe sempre fez questão de nos ensinar coisas úteis para nossas vidas desde cedo. Cozinhar, limpar, arrumar, fazer barras, pregar botões, bordar e fazer crochê. A primeira vez que eu peguei uma agulha de crochê e fiz minha primeira correntinha, foi com oito anos de idade. Eram correntinhas de tantas cores que davam voltas no meu mundo infantil, viravam enfeites para bonecas, colares, pulseiras.

Eu fui crescendo e vendo as coisas lindas que a minha mãe e minha irmã faziam. Minha mãe fez uma blusa para o meu pai que foi carinhosamente apelidada de “assembleia constituinte”, devido à demora para ser apresentada em sua versão final. Minha irmã embalou seus três filhos com mantas feitas pelas suas mãos e como elas, eu aprendi.

Esses saberes tipicamente femininos nos ensinam muito. Eles enfeitam nossas casas, aquecem nossos filhos e podem salvar nossas vidas, foi assim para mim.

A minha madrinha Jandira, uma mulher incrivelmente generosa, quando íamos de férias, me dava uma dúzia de panos de pratos e pedia para que eu passasse biquinhos neles, por isso eu vivia com minhas burrinhas cheias de dinheiro, que ela me pagava por esse trabalho que nem era lá aquelas coisas, mas me mostrou um caminho.

Quando eu tinha uns 18 anos, por um percalço da vida, por uma escolha ruim e exclusivamente minha, eu estava sozinha. Meus pais estavam longe, eu tinha ficado para trás. Eu tinha concluído o ensino médio, não tinha emprego, não sabia o que fazer. Eu precisava de dinheiro para voltar para minha casa, para minha família. Sem ter coragem de pedir socorro eu sentei, chorei e comecei a fazer um balanço e que balanço se pode ter da vida com 18 anos?

Pois bem, naquele balanço vieram as mulheres da minha família. Me veio o bilro, as agulhas, os biquinhos nos paninhos. Eu conhecia uma mulher, maravilhosa, que me estendeu a mão. Ela me perguntou se eu sabia fazer crochê e o que eu sabia fazer. Ela me mostrou seu trabalho e disse: “eu te dou a matriz desses jogos de banheiro, mas não posso te ajudar com o fio, esse você terá que comprar, pode vir aqui em casa, a gente faz juntas, no que precisar eu te oriento, porque os que eu estou fazendo estão encomendados”.

Ainda me falou: “faz uns 20 jogos de três peças, eu te mostro onde vender, mas não faça mais barato que eu, porque nosso trabalho tem o mesmo valor”. Peguei minha última folha de cheque, que eu guardava para uma emergência, mesmo sabendo que não tinha um “Collor” de fundo e fui comprar barbante, 20 rolos. Fiz 20 jogos, coloquei numa mochila nas costas e lá fui eu. Daqueles jogos surgiram muitas encomendas, minha última entrega foi uma cortina.

Em três dias eu tinha vendido 19 jogos. Um eu guardei e levei para a minha mãe de presente, quando consegui voltar para casa.

Eu arrumei emprego, comecei a fazer outras coisas e por um bom tempo as agulhas ficavam guardadas. Em períodos de desemprego o crochê sempre esteve ali, nem que fosse num gorro ou cachecol para dar de presente quando eu não tinha dinheiro para comprar outra coisa.

Com 25 anos de idade eu tinha um emprego razoável e finalmente conseguia custear minha faculdade de Direito, que era realmente um sonho. Tudo ia bem, mas quando eu estava no quinto semestre da faculdade, fiquei doente e fui afastada do trabalho. Por alguns meses eu recebi auxílio doença, no entanto, a perícia não reconhecia minha doença e a empresa não queria assumir o risco de piorar a minha condição e não me recolocava.

Entrei numa luta na justiça que durou 6 anos devido a essa situação com a empresa. Sem desfazer o vínculo, eu não podia arrumar outro emprego, sem a questão resolvida na justiça, eu não tinha salário. Meus pais sempre fizeram o que puderam por mim, meus irmãos todos me ajudaram de alguma forma e até o Toni, que ainda era meu namorado naquela época, me ajudou para que continuasse os estudos, mas eu estava tão desesperada que cogitei trancar a faculdade.

Todo final de semestre íamos eu e a minha mãe para a fila da renegociação da Tuiuti, ela com o talãozinho de cheque embaixo do braço para renegociarmos o semestre passado e eu me matricular no semestre futuro. Houve momentos em que realmente, mesmo amando meu curso, adorando meu desempenho, cogitava parar.

Eu cheguei do último dia de aula do primeiro semestre de 2004, joguei a mala longe, deitei e comecei a olhar para o teto. Ele girava e no seu giro eu vi o bilro da minha bisa, as toalhinhas feitas pela minha vó e lembrei do saber que me salvou uma vez antes. Eu tenho o hábito de esconder dinheiro “de mim”, fui escavar minhas carteiras velhas e achei a fortuna de uma nota de R$ 50,00, para se ter uma ideia, era 10% da mensalidade da faculdade, então era um bom dinheiro.

No ônibus eu pensava: “o que eu posso vender na faculdade, Meu Deus?” Era meu contato com pessoas e ali quem se interessaria por jogo de banheiro? Fui criando na minha mente faixas de cabelo largas, cachecóis, cintos de franja, gorros. Desci na Rui Barbosa cheia de esperança, voltei para casa carregada de lã e barbante colorido.

Cheguei em casa e comecei. Naquela noite eu teci muitas coisas. Impossível contar, mas foram muitas mesmo. Com vergonha, pedi autorização à prefeita do campus, ela permitiu. E não é que foi um sucesso? Eu saía do campus Mossunguê e ia levar encomendas no campus do Barigui. Abastecia uma lojinha de terminal e foi assim, até o último semestre.

Com muita sorte, eu consegui um estágio na própria faculdade que me dava meia bolsa e pagava uma remuneração, assim consegui me formar sem dever nenhum real, graças ao crochê, que a partir daí é usado para o melhor: receber afago e afagar pessoas.

Em meio a esses anos duros, sem dinheiro para comprar presente, fiz uma echarpe para a minha sogra e uma para cada uma das tias do meu marido. Qual não foi a minha emoção, depois que partiram, me surpreender ao empacotarmos as coisas delas, encontrar os presentes que fiz guardados de uma forma especial, junto a outras lembranças que marcaram suas vidas.

Minha irmã às vezes me surpreende. Já me mandou bolsa de crochê, mantas para as bonecas da Isabel e até um jogo de amarelinha de crochê, incrivelmente lindo. Eu, por minha vez, já a presenteei com trilhos, tapetes, cachecóis. Eu e minha mãe sempre trocamos crochês, ela adora fazer roupas para a Isabel e mesmo com uma artrose que a maltrata, não deixo faltar fios para ela, porque sei o prazer que ela sente em tecer.

De tempos em tempos, eu me reencontro com a minha caixa de agulhas e fios. Para meu marido, cachecóis que o envolvem com o amor das minhas mãos, para minha filha até máscara de boneca, para minha sobrinha neta eu fiz flores que enfeitam sua cortina.

Os efeitos do isolamento às vezes nos atordoam. Há alguns dias atrás conversei com uma amiga irmã, falávamos sobre as incertezas desse momento em que vivemos. No dia seguinte ela me mandou um presente que me reanimou muito, a gratidão é um remédio incrível para os males desse tempo.

Mal sabia ela que depois daquela conversa, eu tinha começado a tecer um presente para ela, como uma maneira de afagá-la, mesmo que de longe. Para cada pontinho, um cafuné. É assim que eu sinto. E é através desse saber tipicamente feminino que senti a sororidade das mulheres que colocaram ele na minha vida.

Os pontos contam a minha história, enfeitam a minha casa, afagam a quem eu amo e me colocam no prumo. Sempre brinco que para saber meu nível de ansiedade basta observar quantos artesanatos novos têm na minha casa.

É isso que o crochê me dá: Paz. Começa com um único nó,  com a união de cada pontinho formam algo novo que pode assumir várias formas. Para mim ele já foi curiosidade, aprendizado, memória, carinho, salvação. Agora ele é legado. Aliás, Isabel já fez a sua primeira correntinha.

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