Curitiba, a “cidade inteligente” que usa estratégia burra no combate à Covid-19

Abre e fecha confunde a população, desrespeita quem está em isolamento e os profissionais de saúde

Numa reunião do Conselho Municipal de Saúde, a secretária municipal de Saúde, Márcia Huçulak, se apressou em dizer que “gosta de trabalhar com gente inteligente” quando um colega a “indicou” para ministra da Saúde. Enfermeira, Huçulak tem fama de tomar decisões técnicas, o que ela demonstra quase diariamente nas lives que conduz para atualizar a população a respeito da situação da cidade.

Com Huçulak e vários outros profissionais bastante qualificados, o prefeito Rafael Greca, ainda em março, parecia estar num caminho promissor na condução da crise da pandemia na cidade. Assim como seu colega governador, Ratinho Junior, foi rápido em determinar o fechamento das escolas, a restrição a atividades não essenciais e o estabelecimento de um plano de contingência.

Três meses depois, Greca passou de promissor a, no mínimo, insuficiente. Editou medidas necessárias, só para voltar atrás após pressão de setores interessados. Como resultados, a cidade que chegou a 60% de isolamento social, agora não passa de 40% enquanto os casos identificados e os óbitos crescem de maneira acelerada.

Ao assumir decisões impopulares (mas importantes para conter a doença) e depois voltar atrás, o prefeito perdeu a chance de dar sinais claros para a população. Isso abriu espaço para confusão, “fake news” (não aquela da qual ele acusa a imprensa sempre que esta faz o que deveria fazer, mas sim boatos, mentiras e outras informações de má qualidade que ganham espaço quando a comunicação oficial é confusa e ambígua), e desrespeito generalizado aos pedidos da secretária da saúde para que a população fique em casa.

Sem o respaldo claro, decidido, forte do prefeito às medidas de isolamento social, Huçulak se reduz a uma voz irritada na internet, dando bronca nas pessoas por não esperarem por ônibus mais vazios, como se essa população que se aperta nos expressos estivesse ali passeando e não tentando chegar no horário para trabalhar nas lojas e shoppings que o prefeito deveria ter fechado, mas voltou atrás e não fechou (estão fechados agora depois que o governo do estado emitiu novas medidas de isolamento).

A cidade inteligente de Greca, do Vale do Pinhão, fez pouco para usar a tecnologia e a inteligência para reduzir o impacto da pandemia em sua vida econômica. Poderíamos, por exemplo, usar a estrutura de comunicação da prefeitura, que não é pequena nem barata, para alertar regiões da cidade da presença de casos na região e, em casos extremos, decretar lockdown em comunidades específicas.

Mas não, nesses mais de cem dias o prefeito continuou a usar um sistema de WhatsApp para avisar que está asfaltando a cidade. Fez vídeos para criticar a imprensa e dizer que está tudo bem. Enquanto isso a cidade, além de ver o número de doentes e óbitos crescer, sangra dinheiro no atendimento de pessoas que, se houvesse uma política mais acertada no município, não precisariam adoecer, muito menos morrer.

Greca poderia ter usado dados para deixar clara a gravidade da situação e informar melhor a população. Mas prefere respaldar o sigilo decretado pelos planos de saúde e hospitais privados a respeito da situação de pouco menos da metade dos leitos hospitalares da cidade.

A prefeitura também não tem qualquer consistência nas informações que divulga, colocando jornalistas, pesquisadores e demais interessados numa gincana permanente para saber qual a real situação da cidade.

O coronavírus é novo, ainda precisa ser melhor compreendido, mas há algumas coisas claras. A primeira delas é que esse abre e fecha descoordenado tem pouca efetividade. Se Curitiba ainda não entrou em colapso é porque pelo menos parte da população está pagando um preço alto, mas está em casa, tomando todos os cuidados (e mesmo assim tem que ouvir “bronca” da secretária de saúde).

A segunda é que a falta de um caminho claro e a tomada de medidas sem apoio social (a prefeitura fez questão de não colocar a sociedade civil em seu Comitê de Técnica e Ética Médica, que supervisiona as medidas de combate ao Covid-19, reduzindo-o a apenas três de seus subalternos) está custando e vai continuar a custar caro a economia da cidade.

Decretar um mês, 40 dias de lockdown teria sido muito menos danoso para empresas e a população em geral do que esses 100 dias de indefinição. Uma postura firme da prefeitura também reduziria a coragem de quem insiste em desrespeitar as medidas decretadas e daria respaldo ao cidadão que quisesse ajudar na fiscalização.

Claro, sem lockdown a prefeitura pode evitar de ter que pensar a sério em programas financeiros de ajuda à população e a empresas. Só que se em março essa ajuda poderia ser por um mês, talvez dois. Agora a cidade já vive um aumento forte nos gastos com saúde, bancando o dobro dos leitos caríssimos de UTI no SUS em contratos emergenciais para dar conta de uma demanda que só tende a crescer.

Além disso, a essa altura temos já o impacto nas receitas do município da tragédia que está sendo ter comércio ou prestar serviço durante a pandemia. A partir de agora fica cada vez mais difícil para a cidade bancar um programa de apoio financeiro, ainda mais se a situação atual, com a quantidade de casos que temos e perspectiva de ficarmos bastante ainda em quarentena para que o pior passe.

Mas sem apoio financeiro do governo municipal a cidade vai cada vez mais para um buraco financeiro de uma crise econômica sem precedentes. As escolas e universidades, parte importante da vida curitibana, sofrem com inadimplência e dificuldades. Centenas de escolas infantis fecharam ou vão fechar. Milhares de professores estão sem trabalho e sem renda.

Outras áreas importantes da economia enfrentam seus próprios dramas, que se aprofundam uma vez que a população está cada vez mais sem dinheiro.

Ao invés de incentivar que a iniciativa privada encontre formas alternativas de manter seus negócios com mais segurança tanto para seus funcionários quanto para o consumidor, a prefeitura se limita a acatar os pedidos de quem gritar mais. E deixa milhares que não têm voz a míngua.

Não seria o caso de usar a tal inovação da qual o prefeito falou tanto em sua campanha? De identificar áreas com maior ou menor potencial de reestruturação. De atuar para que o mercado evite demissões quando possível, contribuindo para manter o dinheiro circulando, alimentando a economia.

Se há herois na pandemia em Curitiba, são os profissionais de saúde e parte da população que está pagando um preço alto, mas está em isolamento social

Não é por falta de inteligência que a cidade não conseguiu reduzir o impacto da pandemia. As universidades estão aí, há funcionários públicos competentes, pesquisas sérias no Brasil e no exterior já demonstravam qual seria o comportamento da doença. O que faltou foi a cidade ter um prefeito que optasse por governar e não ficar dividido entre as decisões técnicas e a vontade de não desagradar alguns grupos.

Greca, na primeira gestão, deixou como legado os coloridos Faróis do Saber, que segundo ele iluminariam o caminho do conhecimento para a cidade. Nesta segunda chance, porém, parece que o que ficará na História é a escuridão do populismo, da falta de liderança e do rastro de mortes que poderiam ser evitadas.

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