Por que manejo de araucárias não é conservação?

Associar a conservação dos últimos fragmentos de florestas com araucárias do Brasil ao seu corte é ridículo. Fala-se em “manejo” quando existe suficiente população, vegetal ou animal, a ponto de, artificialmente e quase sempre em substituição aos mecanismos de controle naturais, garantir à sua própria existência ou a existência de outras formas de vida existentes no mesmo ecossistema

A deslumbrante paisagem tropical atingiu o jovem Alfredo Andersen como um tsunami de emoções. Era muita vida, muita luz e energia; muita cor. Um choque para o jovem norueguês que, há semanas, vivia confinado dentro de um exíguo cubículo, na embarcação que traria ao Brasil o pai da pintura paranaense e um dos mais importantes impressionistas brasileiros. Um choque de biodiversidade, surgido do contraste entre o monótono verde musgo das homogêneas florestas setentrionais e o degradê carnavalesco e gritante da Mata Atlântica, primeira paisagem que recebia os visitantes que chegavam ao porto de Cabedelo, na Paraíba. Posteriormente, o que encantou o jovem pintor foi a originalidade das araucárias, e este, assim como Bakun e Matter, escolheu a paisagem sulina como seu tema principal.

As araucárias são presença marcante na obra do pintor norueguês, radicado no Paraná, Alfredo Andersen.

Andersen não foi o primeiro, e com certeza não foi o único, a perceber a singularidade e beleza de nossa variedade natural. Desde Caminha, passando por Debret, a biodiversidade brasileira tem sido cantada, escrita e reconhecida como um dos nossos maiores diferenciais. Entretanto, reconhecer a existência desta miríade de formas de vida – e obviamente, a singularidade desta paleta de sequências genômicas – ainda não é um conceito internalizado e defendido em nossa sociedade ou por nossas lideranças políticas. Pior: não é tido como algo que possa trazer valor e desenvolvimento ao nosso país. Paradoxalmente, então, mesmo existindo o reconhecimento de que a biodiversidade nacional coloca o Brasil em uma posição única entre as nações, negamo-nos, enquanto nacionais, a reconhecer as oportunidades e vantagens que esta mesma biodiversidade nos proporciona.

Aqui, no nosso estado, exemplos que evidenciam essa cegueira ambiental são tão abundantes quanto os coleópteros da Floresta Ombrófila Densa. Em Pontal do Paraná, cidade guardiã da paradisíaca Ilha do Mel – localidade absurdamente vocacionada ao turismo de natureza – políticos e empresários com uma visão de mundo tão arejada quanto o banheiro químico de um showmício sertanejo, defendem a destruição de um dos últimos remanescente de Floresta Atlântica de terras baixas para a construção de um porto privado, cuja viabilidade econômica e situação fundiária são, no mínimo, questionáveis. O Parque Nacional do Iguaçu, visitado por mais de dois milhões de turistas a cada ano, corre o risco de ser rasgado por uma estrada que integra nada à coisa alguma (ou nada de alguém ou coisa alguma de outrem); a Escarpa Devoniana, e seu mosaico de estepes, florestas com araucárias e solos hidromórficos corre o risco de ter sua paisagem desfigurada, como se, pela vingança de uma deusa Aracne embriagada pelos agrotóxicos da monocultura da soja transgênica, devessem ser o campos naturais transformados em uma gigantesca teia de aranha infernal.

Entretanto, nenhum desses absurdos parece se comparar às bizarras iniciativas que pregam o “manejo” da floresta com araucárias. São absurdas essas proposições por não encontrarem, na ciência da conservação, justificativa técnica plausível. São absurdas por refletirem os interesses mais egoístas daqueles que insistem em ver as florestas de sua “propriedade” transformadas em tábuas e chão de lavoura. São absurdas, por fim, ao desconsiderarem os aspectos jurídicos e econômicos, que, se de um lado, constitucionalmente impedem essas iniciativas, do outro asseguram alternativas sustentáveis aos que mantém remanescentes de Floresta Ombrófila Mista em seus imóveis rurais.

Cerca de 2 milhões de turistas visitam o Parque Nacional do Iguaçu a cada ano. Crédito da foto: Fabíola Sinimbú/Agência Brasil.

Associar a conservação dos últimos fragmentos de florestas com araucárias do Brasil ao seu corte é ridículo. Fala-se em “manejo” quando existe suficiente população, vegetal ou animal, a ponto de, artificialmente e quase sempre em substituição aos mecanismos de controle naturais, garantir à sua própria existência ou a existência de outras formas de vida existentes no mesmo ecossistema. Assim, por exemplo, admite-se a caça – manejo – do cervo de cauda branca na América do Norte, pois com a extinção dos lobos, uma superpopulação atingiria os estoques de pasto dos próprios cervos e de todos os outros animais. O mesmo vale para espécies vegetais, mas jamais para espécies em extinção, ou de ocorrência em ambientes depauperados. A supressão de pinheiros-do-paraná, nos resquícios já muito empobrecidos e isolados, serve, tão somente, ao aumento deste mesmo empobrecimento e insularização. Ou, sendo mais objetivo: aos interesses dos que preferem ver essas últimas florestas ocupadas por plantios industriais de erva-mate, ou, simplesmente, tombadas no chão para fazer passar o arado.

É comum entre aqueles que defendem o corte das araucárias em áreas naturais apontar como exemplo florestas do hemisfério norte e escorar suas defesas às técnicas silviculturais de uma escola alemã de engenharia florestal. Esses argumentos não se adequam à floresta subtropical do Brasil meridional e, muito menos, a uma floresta que existe em menos de 5% de sua cobertura original. Somente a má-fé ou a ignorância crassa justificam uma comparação entre uma floresta absurdamente monótona e muito marcada pelas dormências hibernais com a pujante floresta existente nas proximidades do Trópico de Capricórnio. Numa floresta subtropical, cada árvore é um universo: habitam os galhos das araucárias – e das imbuias, caneleiras, cedros-rosa, tarumãs, podocarpus – cipós, bromélias, anfíbios e répteis em número suficiente para rechear a coleção de qualquer museu de história natural da Europa. O clima, mais incerto que definido, permite a nidificação de aves, desta ou daquela espécie, o ano todo. Não é uma floresta de espécie só, um mar de pinheiros. São comunidades vegetais e animais, interdependentes. Nada a ver com a sinfonia de uma nota só de uma schwarzwald. Uma polca que nada em nada se assemelha à nossa MPB.

Insistir neste erro é ignorar, temo que por conveniência gananciosa, os erros já cometidos em outros locais do planeta. A Austrália é berço de uma prima da nossa angustifolia, a araucária bidwilli. A bunya (nome aborígene para a araucária australiana) é tão prolífica quanto nossa araucária na produção de pinhões e tão importante para a floresta biodiversa subtropical australiana quanto o nosso pinheiro. A queda das pinhas marcava – e marca – um evento importante na cultura aborígene, com a abundância de frutos e consequentemente de caça, propiciando encontros entre tribos relacionadas, mas distantes entre si. Pois bem: logo os colonizadores europeus perceberam que esses encontros representavam a oportunidade dos nativos para reivindicar mais direitos e se fortalecer nas suas lutas. Como não mais existia espaço no zeitgeist australiano para impedir tais encontros, a alternativa, disfarçada de “manejo” para a “conservação” foi cortar as árvores. Mesmo todos sabendo – como aqui também todos sabem – que o mercado e a indústria não estavam preparados para receber araucárias, insistiram no corte justificando que as bunyas passariam a ter “valor” para os nativos. Obviamente, uma vez cortadas, as árvores foram substituídas por espécies mais adequadas à monocultura industrial, como ecucalhyptus, perdendo os aborígenes a sua ligação com o local. O mesmo truque sujo foi usado no extermínio dos bisões para afastar os ameríndios norte-americanos das planícies cultiváveis, ou na derrubada das castanheiras de Chico Mendes para livrar o das terras amazônicas as árvores e gentes que atrapalham a entrada do gado.

A araucária bidwilli, comum na Austrália, é uma prima distante do pinheiro paranaense.

A supressão de araucárias defendida – repito, com base em argumentos falaciosos – ocorreria em áreas naturais todas, inevitavelmente, protegidas. Não existem remanescentes de florestas com araucárias, hoje, que não se encontrem em áreas de reserva legal, em áreas de proteção natural, em unidades de conservação ou que, por classificáveis como vestígios em estágio secundário avançado de recuperação, não estejam legalmente protegidos, seja pelo Código Florestal, pelo SNUC, ou pela Lei da Mata Atlântica. Assim, sendo juridicamente impossível permitir a supressão, aguardam os interessados nas mediadas que permitem o corte que a lei vigente não se aplique.

Considerando o desmonte dos órgãos ambientais sofrido nos últimos anos e acelerado no presente governo, nas esferas estaduais e federal, é, infelizmente, o que se pode esperar. Ou seja, o legislador que, de antemão, já conta com a inoperância do aparato de fiscalização ambiental estadual ou federal, sabe que o corte de araucárias passará impune. E, uma vez incentivado por uma lei de gestação teratológica, inseminada no ventre da corrupção legislativa por interesses inconfessáveis do produtor de commodities agrícolas para exportação, também garantirá ao pequeno proprietário rural a derrubada impune do “mato” para a “produção”. É lamentável que as autoridades políticas não apresentem a esses mesmos proprietários alternativas mais duradoras, juridicamente estáveis, e, principalmente rentáveis de uso. Ainda mais considerando que essas alternativas existem, são economicamente factíveis e já foram testadas em outras localidades.

Talvez o reflexo de nossa história econômica cíclica nos impeça de perceber o potencial financeiro duradouro de uma floresta com araucárias de pé. O mundo investe em roteiros de visitação de áreas naturais, privadas ou em unidades de conservação. O Bosque de Nahuel Huapi, na Argentina, rende muito mais, e há muito mais tempo, em produtos turísticos, do que teriam rendido as tábuas vermelhas de suas árvores. As sequoias do noroeste americano, os kori neo zelandeses, as florestas de xaxim gigantes da Austrália fazem chover dólares e empregos nestas regiões. Só na localidade de Derby, na Tasmânia (ilha localizada no canto inferior do lado de baixo do fim do mundo), o mountain bike praticado na floresta subtropical, entre ferns e bunyas, rende à cidadezinha 60 milhões de reais por ano. E se converteu em objeto de desejo para os praticantes do esporte pelo globo, que não hesitam em pagar uma dezena de milhar de dólares para viver a singular experiência. Já por aqui, apesar de estarem as florestas de araucárias localizadas próximas aos locais mais densamente povoados do Brasil, não existe um roteiro turístico, uma excursão sequer, que ofereça passeios de visitação às florestas subtropicais. Brasileiros do Sul pagam caro para visitar espaços verdes no Canadá, na Africa do Sul e na Nova Zelândia; e “instagramalizam” suas experiências. Contam aos amigos, e aos amigos dos amigos, que estiveram nestes locais tão raros, cimentando no mindset coletivo a importância da sua conservação. Por quê isso não acontece com nossas florestas de pinheirais? Por quê não insistir na construção de trilhas entre as árvores, na criação de programas de apoio ao turismo de natureza, na prática de atividades esportivas e espirituais – como o banho de floresta praticado nos bosques japoneses – ao invés de apostar na derrubada de árvores para a feitura de prateleiras de escritório?

O mountain bike é praticado na floresta subtropical, entre ferns e bunyas, e rende a Derby, na Tasmânia, R$ 60 milhões por ano.

Indo além do turismo, mesmo os produtos não madeiráveis tendem a ser mais rentáveis do que as tábuas. E novamente, rentáveis a longo prazo. O pinhão possui um infinito potencial para o mercado gastronômico. E, em que pese plantações de pinhão virem a crescer nos próximos anos, ainda assim sobrará espaço para o pinhão coletado, desde que esforços de marketing vinculando a semente comestível aos espaços florestais sejam feitos. As araucárias mantêm um universo florestal onde coabitam inúmeras formas de vida vegetal e animal. São inúmeras formas de vida que podem carregar a cura para enfermidades, a exemplo da vimblastina, obtida de um cipó de Madagascar (Catharantus roseus), importante aliadono no combate ao câncer infantil. Quantas outras poções não existem escondidas abaixo dos galhos das araucárias?

As florestas com araucárias são o símbolo deste espaço de Brasil. Não faz sentido reduzir a pó de serragem o pouco que resta destas florestas ancestrais. Devemos, sim, buscar internalizar a sua importância como floresta e como referenciais culturais, artísticos, históricos e turísticos. Incentivar a criação de roteiros turísticos que passem pelas araucárias, de eventos esportivos que tenham as galerias de arvores como pano de fundo. A produção de madeira já se encontra suficientemente apoiada na plantação industrial de essências exóticas. Imaginar que as araucárias – notadamente aquelas crescidas de forma heterogênea e sem condução florestal em ambiente natural – poderiam competir com o pinus é fantasia ou má intenção. O suposto manejo de florestas com araucárias, frágeis e escassas, esconde o interesse daqueles que só enxergam a riqueza na semana seguinte e reduzem o futuro aos interesses de poucos.

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