À espera do vestibular

O vírus que ceifa vidas ainda não destruiu o tempo e a esperança de que pode haver um futuro melhor para esses jovens estudantes

“A espera é um encantamento”, diz Barthes. “Todas as diversões que me atraem são momentos perdidos por causa da espera, das impurezas da angústia.” O cenário com o qual nos defrontamos é bem diferente da reflexão do autor, mas a imagem é oportuna. Desde o início da pandemia, dezenas de milhares de jovens imediatamente perguntaram-se: “e o vestibular?” Afinal, esse funil para o mundo-do-lado-de-lá é uma das coisas mais importantes na vida de muitos rapazes e moças dos quinze aos dezoito anos, além de muitos outros, já adultos e que finalmente conseguiram colocar na agenda da sobrevivência o tempo e a condição de avançar nos estudos. Mas então veio a pandemia, o medo da doença, o perigo do contágio, o afastamento dos lugares do cotidiano, dos amigos, da escola, tudo ficando remoto, distante. Agora é tudo pelo computador, para quem tem, e para quem tem ainda precisa ter um bom sistema de transmissão, e um lugar pra ficar em uma casa que de repente ficou amontoada de urgências. E mais: como tirar dúvidas e como saber que se está mesmo preparado para passar incólume pelo vestíbulo, o corredor entre a varanda da caquinhos vermelhos e o interior de tábuas compridas e lustrosas e candelabros e cadeiras de espaldar alto, veludo verde, a Universidade? Como saber se agora tudo ficou diferente? O que esperar? Ah, a angústia da espera…

A pandemia era pra ser uma gripezinha, disse nosso chefe do Executivo, mas, ora vejam, ele estava errado. E sessenta dias depois do início do tranque-se quem puder e mais de vinte mil mortos – começamos a ter um amigo de um amigo que já perdeu alguém – a angústia do vestibular pareceu menor, um capricho. Mas não. Para os jovens e familiares que esperaram esse ano, o ano do cursinho, do fim do Ensino Médio, da entrada na Universidade, a angústia só aumentou, pois agora, além da espera para fazer o vestibular, era preciso saber “se” e “quando” haveria vestibular. As dores, cada um sabe a intensidade delas, não se medem com a régua da razão. A angústia não tem extensão, tem profundidade. E, embora subjetivas, a desigualdade objetiva da nossa sociedade ajuda bastante para agravar essa dor. O governo estadual lançou um programa de ensino remoto, com os professores mesmos, de casa, preparando as aulas, os alunos assistindo do jeito que dá, mesmo com um expressivo número de professores sem computadores pessoais, sem treinamento sobre como preparar aulas e um ainda mais expressivo número de jovens sem computador ou sem rede de dados condizente e sem um ambiente familiar adequado para estudar. E sem saber se haveria e quando haveria vestibular. Excelente cenário para um desesperar-se.

A UFPR primeiro antecipou os livros de Literatura, Filosofia e Sociologia para que os jovens fossem adiantando seus estudos, na mesma época em que anunciava a suspensão das aulas até começo de maio. Quem bons tempos esses! Havia uma data, pouco mais de um mês sem aulas, tranquilo, depois compensa nas férias de julho, já vai adiantando as leituras. Mas o vírus não estava para brincadeira, parafraseando um outro “vírus” que nos assola. E a UFPR suspendeu as aulas sem data para recomeçar. Camadas de angústia, uma textura de muitas cores. E agora? O que fazer? Continuo a estudar? Consigo estudar? A perda momentânea de perspectiva causou um enevoamento geral, um blackout cognitivo. Como será cancelar 2020 e transferir uma vida inteira para 2021? Já pensaram o tamanho das filas?

Por fim, há poucos dias, a UFPR reacendeu a luz no fim do túnel. Haverá vestibular e ele será em janeiro. Alívio, um alívio contido, como um suspiro discreto, de olhos fechados, os lábios contritos. E um “obrigado” sussurrado entre dentes. O vírus que ceifa vidas ainda não destruiu o tempo e a esperança de que pode haver um futuro melhor para esses jovens estudantes. A Universidade mostrou a sensibilidade de quem ama e sabe que uma verdade, mesmo que frágil, dita com gentileza e cuidado, é a melhor solução para aliviar as dores da alma nesses dias de águas turvas. O mundo injusto, o governo ineficaz, a falta flagrante de investimentos em educação e tecnologia, a desigualdade social que distancia mais do que qualquer doença transmissível, tudo isso é de antes da covid-19. A pandemia desvelou, cruelmente, nossos males. Cabe às instituições sérias e sensíveis, como a UFPR, manter o leme do barco voltado para Ítaca e, ao invés de emular as sereias cantando “vem pro shopping, vem pra festa, vem pra rua”, deve ser somo o sussurro de Telêmaco: “calma, espera, mas não desiste. Estou aqui e quando chegares, tudo será melhor porque poderá ser novo, comigo ao seu lado”.

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