Reunião de Bolsonaro, entrevista de Lula e editorial do Financial Times: vírus revela a fragilidade do contrato social

Governos terão que aceitar um papel mais ativo na economia. Eles devem ver os serviços públicos como investimentos e não como despesas

O subtítulo principal deste artigo não é meu. Foi retirado do editorial de um dos mais importantes jornais do mundo, o Financial Times, no mês passado: Virus lays bare the frailty of the social contract: Radical reforms are required to forge a society that will work for all. Trata-se de um periódico muito conhecido, publicado originalmente em Londres desde 1888. Com especialidade em economia, tem sido por mais de um século uma importante fonte de pesquisa para a análise da conjuntura capitalista. A menção à recente afirmação de Lula sobre um efeito positivo do “monstro” do coronavírus decorre da conexão dos assuntos.

Lula expressou-se de forma péssima. Felizmente, com um posterior pedido de desculpas, reconheceu o erro de sua colocação. O covid-19 é realmente um desastre. Algo que em hipótese alguma pode ser comemorado face a quaisquer que sejam possíveis externalidades positivas. Entretanto, o contexto da tratativa é muito mais importante que a sua infeliz expressão. É este o link que eu gostaria de fazer. A conclusão de Lula na entrevista, para além da fatídica frase, na realidade, combina ironicamente com um dos mais impactantes editoriais do Financial Times dos últimos tempos. O que permite fazermos outro link com a recém divulgada reunião ministerial de Bolsonaro, na qual os discursos realizados demonstram o quanto o governo atual está se posicionando avesso não só ao modelo social de Estado ou de postulados de esquerda, mas também de parte significativa do establishment econômico mundial.

O tema central do editorial é a pandemia do covid-19 e qual seria a receita para os líderes mundiais tratarem deste problema. Segundo o jornal, estamos perante a mais séria crise político-econômica desde o período da grande depressão e da subsequente Segunda Guerra Mundial – uma verdadeira “public health war”. Por outro lado, podemos aprender com a história, e uma das lições é a necessidade de líderes competentes, capazes de planejar o futuro, mesmo antes de vencerem a crise. “Os líderes que venceram a guerra não esperaram pela vitória para planejar o que viria a seguir.” O editorial cita Roosevelt e Lula também.

Mas esta é só uma pequena vertente do editorial. O seu principal foco é a realização de uma radical autorreflexão a respeito do capitalismo contemporâneo. Será que o vírus irá injetar um senso de união nas sociedades polarizadas?

Por certo, será muito mais difícil vencer o desafio em meio à falta de propósitos comuns. Em momentos de crise tão significativa, a demanda por sacrifícios precisa vir acompanhada de benefícios para todos e não apenas para os grupos tradicionalmente já contemplados.

O fato é que o vírus põe em evidência as desigualdades já existentes e cria outras antes desconhecidas. Resta saber o quanto as sociedades ricas (eu diria, como a brasileira, que integra uma das dez mais pujantes economias do mundo) estão longe do ideal de adequada distribuição dos ônus sociais.

A luta contra o vírus tem colocado em destaque fatos já conhecidos, mas que se tornam ofuscantes à luz de uma crise que excede a capacidade de normalização capitalista. Apesar das chamadas por mobilização social, o fato é que “nós não estamos juntos nesta”. Com um sistema de saúde em geral despreparado, o lockdown está impondo o maior custo àqueles que já são os que mais sofrem. Milhões de empregos estão sendo perdidos em setores como o de turismo, enquanto em outros a transferência para home office é até uma facilitação. Muitos empregados com baixas remunerações não têm como se manter – e agora correm o risco de ter seu salário reduzido por acordos laborais obviamente coercitivos. Trabalhadores da área da saúde, atendentes, motoristas de aplicativo e entregadores estão arriscando suas vidas, pois não podem parar. E qual é a resposta que o mercado tem dado ao problema? Nenhuma. Viva e deixe viver; morra e deixe morrer. Afirmam os editores que foi exposta a fragilidade das políticas econômicas dos últimos 40 anos no mundo. No caso brasileiro, Paulo Guedes segue o caminho inverso, citando os chicago boys como se estivéssemos em plena década de 1980.

E face a este quadro, como será a luta para evitar a falência e o desemprego em massa? No Brasil, o governo federal, capitaneado por incompetentes e neófitos, ainda continua acreditando que a solução está na fragilização do Estado social e na destruição do modelo constitucional de 1988. Ou então, no jejum dominical. Ouvir os ministros usarem a retórica da liberdade a fim de paradoxalmente realiza-la por intermédio do armamentismo é algo surreal. A visão distorcida e autoritária de identidade contra os povos indígenas e demais culturas peculiares ressalta a ignorância de um grupo que vive em um passado já superado pelas democracias avançadas.

Uma mistura de delírio, incompetência e má-fé. O Congresso, financiado por uma elite predatória e de pensamento linear a curto prazo, segue a cartilha, ainda que de forma periclitante, pois está assustado. A elite está dividida, é fato, mas poucos entenderam que se esta estratégia continuar logo poderão estar afundando no mesmo barco da patuleia que tanto desprezam. Os mais vulneráveis são sempre os primeiros e mais atingidos, mas ninguém sabe onde está o limite da crise.

O extraordinário apoio orçamentário dos governos à economia, embora absolutamente necessário, pode tornar as coisas ainda piores. Faz muito tempo que as correções econômicas do Brasil passam apenas pela discussão de déficit fiscal e da realização do orçamento – inclusive com a necessária ampliação dos programas sociais. Mas isso é um erro, pois nosso problema estrutural está na seara tributária. Só por esta via é que poderá ser amenizada a longo prazo a crise de desigualdade aqui existente. Mas o ministro Onyx Lorenzoni toca no assunto para falar em desoneração. Uma estratégia já usada, até mesmo pelo PT, e que se demonstrou desastrosa, como demonstram vários estudos do INEP.

O Brasil tem comemorado valores recuperados por operações policiais, como se isso fosse a panaceia para o desenvolvimento. Infelizmente, isso é um nada. Uma gota no oceano de recursos que é licitamente desviado dos mais pobres para os mais ricos no pagamento de juros, em diferentes manejamentos dos títulos públicos, ou em benefícios amorais para pequenas castas de servidores públicos. E, ainda assim, repito, o maior problema é o tributário. Reduzir o Estado, como quer o atual governo, não é uma opção em momentos como este.

A proposta do Financial Times segue na total contramão do atual modelo brasileiro, bem como das temáticas e interpretações impostas reiteradamente pela mídia nos últimos anos. Segundo o editorial, países que permitiram o surgimento de um mercado de trabalho irregular e precário terão ainda mais dificuldade para contornar o problema em um ambiente tão inseguro. Por outro lado, serviços públicos subfinanciados estão se desgastando ainda mais com o peso das políticas de crise. É alto o preço da sua histórica desestruturação – inclusive em países ricos. Lendo o texto, eu fiquei pensando o quanto realmente é importante o princípio da precaução, tão deixado de lado em um país imediatista como o nosso.

Enquanto isso, vasto apoio monetário está sendo dado pelos bancos centrais aos mais ricos, afirma o jornal. Eduardo Moreira tem feito denúncias assombrosas sobre os obscuros auxílios aos bancos dados por Paulo Guedes e sua equipe de agentes liberais pró-mercado. Nada mais característico do capitalismo do que privatizar os lucros e socializar os prejuízos. Para o governo Bolsonaro a preocupação é com os ricos que, em estando em dificuldades, não vão poder “dar emprego” para pobres. Trata-se da nossa conhecida mentalidade patrimonialista e aristocrática.

Em resumo, diante deste quadro internacional, qual é a receita dada pelo Financial Times para contornarmos a crise?

A receita é realizarmos reformas radicais, revertendo as políticas públicas aplicadas nas últimas quatro décadas no mundo. Governos terão que aceitar um papel mais ativo na economia. Eles devem ver os serviços públicos como investimentos e não como despesas. Ademais, devem tornar o mercado de trabalho menos inseguro. Políticas “excêntricas” como a renda mínima e a tributação da riqueza tem que estar em pauta. E sobretudo: a redistribuição deve voltar à agenda. Isso é o que sugere, literalmente, o editorial.

Ou seja, adaptando para o caso brasileiro, é hora de cumprir a Constituição de 1988. Precisaríamos, para isso, esquecer temas retóricos e desviantes. E, em 2022, nos preocupar em eleger um governo que tenha esta pauta.

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