Arte que faz sentido

O lixo e a denúncia nas exposições de três artistas plásticas em Nova York: a brasileira Alice Miceli e as norte-americanas Rachel Harrison e Rachel Feinstein

Em Nova York, neste início de 2020, duas norte-americanas e uma brasileira protagonizam pelo menos três exposições que mereceram espaço na mídia: no Museu Whitney de Arte Americana, os trabalhos de Rachel Harrison (1966) ocuparam quase todo o quinto andar do prédio; no Museu Judaico, o destaque é “Maiden, Mother, Crone”(Donzela, mãe, velha), que reúne as esculturas da Rachel Feinstein (1971); e, na Americas Society, o destaque é o “Projeto Chernobyl”, de Alice Miceli (1980), o qual estreou na 29ª Bienal de São Paulo. 

A escultora Rachel Harrison trabalha com lixo encontrado principalmente nas ruas de Nova York, expondo-o como que casualmente em pedestais elaborados por ela própria. Assim, o espectador se depara com detritos inusitados – um aspirador de pó, um pote de vitamina (ou algo semelhante), velhas fotografias etc. Numa das instalações, os pedestais estão cercados por cadeiras novas ainda com a etiqueta da loja, as quais são uma obra em si, mas, ao mesmo tempo, formam uma espécie de cerca de proteção para que o público não se aproxime demasiado dos pedestais com ready-mades. É interessante constatar que as cadeiras estão de costas para a instalação, num convite para que o público se sente nelas, mas, neste caso, não poderá mais apreciar a obra, passando talvez a fazer parte dela, aos olhos de outros fruidores.   

As esculturas feitas de fios, vassouras, tapetes velhos se misturam a imagens de celebridades da política, das artes etc., ajudando a contar, com humor corrosivo, um pouco a história dos Estados Unidos. No fim das contas, pode-se concluir que os detritos e as celebridades estão em pé de igualdade.

Nesse mesmo museu, aliás, outras mulheres ganham destaque com obras que utilizam fios e tecidos. São elas: Sheila Hicks (1934), Ann Wilson (1931), Lenore G. Tawney (1907-2007) e, como não poderia faltar, Eva Hesse (1936-1970), cujo trabalho influenciou muitas outras artistas.

A obra de Rachel Feinstein é baseada nos contos de fadas, na religião e no teatro, explorando uma estética barroca e rococó que se aproxima do Kitsch e do grotesco. Em uma escultura, reconhecemos Nossa Senhora com o menino Jesus nos braços, mas ela está tão extravagantemente maquiada que sua figura evoca vulgaridade. Essa representação da Virgem Maria é tão estapafúrdia e caricata que lembra a famosa e desastrada reconstituição do rosto de Jesus feita por uma senhora espanhola nos idos de 2012.

Nessa exposição, pode-se assistir ao vídeo de uma famosa performance de Feinstein, “Let the Artist Live” (Deixe a artista viver), de 1994. A artista se fantasiou de Branca de Neve e dormiu em uma galeria durante uma semana, à base de pílulas, como revela. 

Espelhos ocupam um espaço importante na obra de Feinstein, com os quais faz objetos ao mesmo tempo que os utiliza como suportes para pinturas. Para ela, quando vemos nosso reflexo no espelho, vemos de certa forma o tempo passando, e o tempo é curto, pois tudo se esvai rapidamente.

Mais de duas décadas depois do acidente na usina de Chernobyl, na antiga União Soviética, atual Bielorrússia, Alice Miceli tentou captar a radioatividade na zona de exclusão com câmeras pin-hole que espalhou no local, durante vários meses; algumas delas se perderam, mas a artista recuperou trinta, as quais estão agora expostas em uma sala escura. O que se vê nessas “radiografias”? Aquilo que não se pode ver: manchas esfumaçadas, alguns riscos. Algo que permanece um mistério e é claramente uma ameaça. Susan Segal, que assina o posfácio do catálogo da mostra, lembra que esse “trabalho denuncia a urgência de reconhecer o impacto humano negativo no meio-ambiente”. Em tempo de líderes mundiais que negam a degradação acelerada do meio-ambiente, a exposição de Miceli faz mais sentido do que nunca, e parece dialogar com o lixo de Harrison e o grotesco de Feinstein. 

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