A menina do Morro da Formiga

Será que os seguranças também andam atrás das minas brancas nas lojas de cosméticos ou de roupa?

O apito do micro-ondas avisa que a comida está quente. Enquanto engulo um pedaço de vina, penso em quantas vezes minha mãe falou pra não deixar nada no prato e nem desmerecer o que se tem. Em silêncio agradeço, enquanto lavo a louça rapidamente.

Com pressa passo a chave em todas as fechaduras, cuidadosamente fecho o portão. Piso na rua.

Movimento a cabeça cumprimentando o vizinho militar. Tirando ele a rua está deserta, parece que as pessoas se escondem dentro de suas casas com quintal grande e com grama bem aparada. Todas tão diferentes das que eu morei. A menina preta do Morro da Formiga ainda estranha um ônibus parar tão perto de casa.

Enquanto espero o busão meus olhos veem as moças brancas na padaria, os moços brancos da loja de carro, os velhinhos brancos conversando na frente da lotérica e os dois homens pretos suados e sujos correndo atrás do caminhão de lixo. Até a chegada do Detran -Vicente Machado me sinto observada a todo instante por cada um que passa.

Sentada no ônibus lembro da menina que corria livre no morro e que demorou para entender que o resto da cidade conhecia aquele lugar pelas telas dos programas policias. Aqueles que passam na hora do almoço.

Ela se sentia confortável onde morava até que virou uma questão – ela questionava por que na rua não tinha asfalto. E quando foi feito, como se tornou uma coisa incrível. Sendo que em outros bairros era uma coisa simples e normal.

Ela foi descobrindo a visão dos terceiros sozinha, não brutalmente, mas sim dolorosamente. E quanto mais descobria, mas doloroso e revoltante ficava, pela forma que todos julgavam e a pré-definiam.

Me pergunto como é a criação de branco. Eles aprendem a viver ou a sobreviver? Será que a mãe branca avisa que nunca pode correr com a carteira na mão mesmo que esteja atrasado? Que a “roupa de favelado” pode trazer dor de cabeça? Será que branco fica o tempo todo atento ao que acontece à sua volta, igual minha mãe me ensinou? Afinal, não dá pra andar tão relaxado por aí, essa é a verdade. Será que os seguranças também andam atrás das minas brancas nas lojas de cosméticos ou de roupa? Será que os piás brancos aprendem a nunca correr da policia?

As casas começavam a se transformar em prédios e chego no Centro de Curitiba. O trajeto do ponto até meu destino não é muito demorado, mas em volta já posso ver um pouco mais de diversidade, de estilos, de como as ruas são feitas, os estilos de carros que passam e quem está dirigindo, se é carro de empresa ou não, lojas em volta, as pessoas que trabalham dentro delas.

Passo por uma galeria e sinto que não é lugar pra mim, só passo pelas lojas e pelas pessoas que estão dentro dela; um lugar onde evito ter que passar, mas se for necessário, ando com uma postura adequada para tal ambiente.

Meu destino final é onde eu posso respirar, me sentir acolhida. Um lugar onde ser eu não é um problema, porque isso é validado meu esforço só de ter chegado ali e permanecer indo – uma instituição não governamental que ajuda outros jovens como eu.

Até chegar, olhos continuam a me perseguir, mas já variam entre admiração e preconceito. Tanto para a forma que estou vestida quanto para meu cabelo, armado. A vida me ensinou a distinguir esses olhares, será que eles sabem que os olhares deles também doem?

Usam nossa forma de resistência como estilo. Por que quando brancos estão fingindo ser cria ou falando gíria é normal e quando se trata de mim é vocabulário inapropriado?

Com a criação que tive aprendi que não é fácil lidar com essas situações e que desistir não é uma opção; ser forte não é uma escolha e sim necessidade, matar no peito todas as dificuldades e dores que vierem. E “no outro dia a mesma coisa” e assim sucessivamente, com cabeça erguida.

Lidando com as situações que infelizmente se tornaram rotineiras é decepcionante saber que viro só uma coisa, invalidando minhas dores, se falarem do meu cabelo tenho que apenas “sorrir e acenar”.

Da mesma forma que eles têm o direito de “admirar” eu tenho também de manter minha cara fechada.

Antes de entrar no meu destino paro e repito pra mim mesma: Não perca o olhar da menina do Morro da Formiga.

Ser cria de vila é saber lidar com situações que normalmente não são pra um adolescente, jovem saber. A única coisa que deveria ser pensada nessa idade é no nosso futuro e nas oportunidades que queremos que apareçam, mas temos que nos preocupar em apenas voltar pra casa, e abraçar nossa mãe de novo.

Nos colocam no preconceito deles e seguir o caminho contrario que todos ditam pra você é doloroso, machuca, mais abre as feridas do que fecha, e é constante.

De onde vamos tirar forças pra continuar, sendo que mais nos batem do que nos ajudam. Na nossa história a liberdade custa muita coisa, mas no final vale a pena. Revolta você não poder se revoltar. Por que temos que permanecer vestidos com as roupas que eles nos colocam?

Mas Como já dizia o César MC: “O principal foco dessa resistência é não deixar que o ódio me contamine”.

Esse texto foi produzido ao som do álbum do Cesar MC “Dai a Cesar o que é de Cesar”

Sobre o/a autor/a

7 comentários em “A menina do Morro da Formiga”

  1. Senir, que o Poder Divino ilumine seus passos, pois compreendo que essa Luz, iluminou os passos da Nielly a ponto de fazê-la Vitória.
    Vitória, sem palavras , também, pois já é Vitória.

  2. Senir Martins Dos Santos

    É com muito ORGULHO que estou deixando meu comentário nesta matéria postada, escrita por ninguém menos que minha filha NIELLY VITÓRIA.
    Sem palavras, porém muito ORGULHO.
    Sou mãe NEGRA . Nunca deixei transparecer meus sentimentos de indignação pelo RACISMO E PELA DESIGUALDADE SOCIAL para meus filhos. Mas lendo a matéria que minha filha escreveu.. ! É como eu disse. SEM PALAVRAS. Ela se descreve, me descreve . Minha filha que Deus abençoe grandemente sua vida e que você continue sendo essa menina mulher incrível, batalhadora, com sonhos ALTOS não deixando nada nem ninguém tirar isso de você. Voe, sonhe, cria, investe, estude que tenho fé em Deus que as oportunidades virão pra você. Você merece o mundo e o que depender de mim sua mãe SENIR farei com meu amor e carinho ❤️
    SAÚDE, PAZ, ALEGRIA, PROSPERIDADE, SUCESSO E MUITO AMOR ? PRA SUA VIDA.
    AMO VOCÊ MINHA MENINA ?

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