Carta aberta à vereadora Amália Tortato

Talvez a senhora tenha se esquecido – não batiam muito nesta tecla, na escola –, mas o Brasil foi o último país do ocidente a abolir a prática de escravizar pessoas pretas

Cara Amália,

Antes de mais nada, permita que eu me apresente. Me chamo Rafael Moro Martins (nenhum parentesco, felizmente), tenho 47 anos, vivo em Brasília há três anos e meio, sou jornalista. Fico feliz em dizer, para começar, que eu e a senhora temos algo em comum: também fui atleta de vôlei na adolescência (mas eu não muito iria longe com meu 1,76 metro de altura) e frequentei a UTFPr, então Cefet-PR, no curso de técnico em mecânica.

Mas divago. Esta minha carta é sobre diferenças. As suas, com o Plural, as minhas, com a senhora, e as nossas, eu e a senhora, brancos e bem nascidos, com a maioria negra do Brasil.

Talvez a senhora tenha se esquecido – não batiam muito nesta tecla, na escola –, mas o Brasil foi o último país do ocidente a abolir a prática de escravizar pessoas pretas. Vou repetir, por clareza: escravizávamos pessoas com base na cor da pele delas. Encerramos essa prática abominável por motivos econômicos, pressionados pela potência da época, a Inglaterra.

Mas isso não quer dizer que tenhamos cuidado de dar aos pretos recém-libertos condições reais de se integrarem à sociedade, nem de se tornarem cidadãos. A esse respeito, eu recomendo fortemente que a senhora leia esta entrevista de um professor e jurista negro a um brilhante jornalista negro.

É por isso, cara Amália, que você mesma é capaz de perceber que “a população mais pobre majoritariamente é negra”. E é também por isso que cotas raciais existem: para tentar corrigir um problema que se funda no racismo. Negros são costumeiramente pobres porque são negros. É um círculo vicioso. É por isso que a literatura moderna sobre o tema cunhou o termo racismo estrutural. Dispa-se de preconceitos e leia o ótimo resumo preparado pelo professor Silvio Almeida, que fala sobre isso com muito mais propriedade do que eu. Porque estudou o tema a fundo – e porque é negro. (Aqui está um link para o livro na Amazon, mas eu recomendo que a senhora o compre numa livraria pequena de Curitiba, como a querida Itiban, para incentivar o comércio local.)

Permita-me voltar à minha história, sem fugir do assunto. Eu cursei jornalismo na UFPR. Por lá, fui contemporâneo do meu amigo Rogerio Galindo. Ele era um dos três únicos negros brasileiros de que me lembro em todas as turmas dos quatro anos do curso, que somavam umas 80 pessoas. E, naqueles anos 1990, aquilo não nos causava o espanto que deveria, e que hoje causaria – como é bom progredirmos. Falei em negros brasileiros porque, naqueles anos, a UFPR teve a bela iniciativa de abrir vagas a estudantes caboverdeanos. O Cabo Verde, como a senhora sabe, foi um dos tantos países onde os europeus brancos iam capturar pessoas pretas para depois escravizá-las (fortunas foram produzidas, para as metrópoles brancas, por gente preta escravizada). Ainda assim, hoje me espanta que a presença da colega caboverdeana na nossa turma não me tenha feito questionar por que não havia uma política semelhante para os negros brasileiros. Felizmente, havia quem pensasse melhor do que eu, e surgiram as políticas de cotas raciais. Sei que a senhora é contra, mas leia a respeito – elas são um sucesso.

Volto à frase que já citei e a senhora usa para justificar cotas apenas para pessoas pobres. O racismo não afeta apenas negros pobres, ainda que tenha sido bem sucedido em manter a maioria das famílias negras em situação de pobreza. Posso lhe indicar grandes amigos, bem nascidos como eu e a senhora, mas negros, em vez de brancos com cara de europeu como nós, para uma conversa a esse respeito. Mas isso nem mesmo é necessário – Galindo, que a senhora obviamente conhece, pode lhe dizer muito a esse respeito.

E é nesse sentido, imagino (de fato, nunca perguntei), que ele e a Rosiane Correa de Freitas resolveram batizar o site que lançariam como Plural. Plural, pois comandado por um negro e uma mulher, ambos jornalistas. Plural, porque o único, em uma cidade conservadora e racista, a tratar de temas como racismo e feminismo de um ponto de vista diverso. A senhora citou, com admiração, a Gazeta do Povo. Me permita corrigi-la num aspecto: a Gazeta do Povo não é de direita, é de extrema direita. De direita são, por exemplo, O Estado de S. Paulo ou O Globo. A Gazeta do Povo é um portal que defende, abertamente e em editoriais, a homofobia, ao falar em “direito à crítica ao comportamento homossexual”. Como a ciência já sabe há muito tempo, a sexualidade é algo inato, não uma opção. Logo, o direito a criticar o “comportamento homossexual” faz tanto sentido quanto querer espinafrar o “comportamento das pessoas altas” ou “o comportamento dos portadores de rinite alérgica”. (Aliás, fugindo do assunto novamente: quantos dos seus colegas na Câmara Municipal de Curitiba são abertamente homossexuais?) Isso para não falar nos colunistas que difundem mentiras sobre as vacinas, as urnas eletrônicas ou qualquer que seja a teoria da conspiração bolsonarista do dia.

Se o Plural não lhe parece diferente, a convido a correr olhos e ouvidos pelo jornalismo curitibano: a rádio líder em audiência na cidade é dirigida, como fazem questão de frisar todos os seus locutores, por um “radialista e deputado estadual” (conservador, lógico). As duas franquias de rádios de notícias nacionais pertenciam, até há bem pouco tempo, a um mesmo grupo empresarial, cujo presidente se envolveu em diversos escândalos de corrupção – que elas, obviamente, não podiam noticiar. Portais menores vivem de publicar notícias produzidas pelas assessorias de imprensa da prefeitura e do governo do estado. A RPC TV, emissora afiliada à Globo e que pertence ao mesmo grupo empresarial dono da Gazeta do Povo, precisou recorrer à matriz para justificar a veiculação de uma reportagem sobre um casal gay agredido no Água Verde, alguns anos atrás. O dono não queria vê-la no ar.

O Plural trouxe pluralidade a este cenário. E nem acho que precise sair do armário: ele já deixa claro de que ponto de vista vê o mundo desde o primeiro dia. Eu partilho da mesma opinião da senhora: veículos de imprensa são mais honestos quando dizem a partir de que lugar olham para o mundo para reportá-lo. Pois não existe imparcialidade; jornalistas não são cientistas numa bancada de laboratório em que o mundo é um experimento controlado. Nós cobrimos o mundo em que vivemos, a sociedade de que somos parte. Nosso olhar é formado pelo que somos, pela formação que tivemos, pelas oportunidades que nos foram dadas, pelo preconceito que sofremos e pelas injustiças que nos são impostas. Nossa obrigação em meio a isso tudo não é ter uma alegada imparcialidade, mas sim sermos honestos quanto aos fatos.

Falando nisso, ao menos um dos pontos listados pela senhora em seu artigo não é fiel aos fatos: o vereador Renato Freitas não realizou atos políticos dentro da igreja, como mostram imagens e afirma a Cúria Metropolitana de Curitiba. Junte isso ao fato de que vereadores brancos (perdão pelo pleonasmo) foram absolvidos mesmo cometendo faltas muito mais graves e fica cristalino que o julgamento de Renato é marcadamente racista – aliás, estranhei a senhora não ter tocado no uso do e-mail de seu colega Sidnei Toaldo para mandar o  vereador do PT “voltar para a senzala”. Eis aí uma verdadeira quebra do decoro parlamentar.

Eu comecei na carreira de repórter político, em 1999, cobrindo a Câmara Municipal de Curitiba. Não havia um único vereador negro, pelo que me lembro. Em 2020, a senhora foi eleita junto com a primeira mulher negra a chegar à Câmara na história de Curitiba, Carol Dartora. Tudo isso é fruto do racismo estrutural sobre o qual a sociedade brasileira está fundada. Todos somos racistas, tal qual como somos homofóbicos e machistas.

A primeira forma de combater o racismo, a homofobia, o machismo, é reconhecê-lo em nós mesmos. Isso ajuda a percebê-lo na raiz da sociedade em que vivemos. Em sua bonita apresentação no site da Câmara, a senhora diz que a profissão de comissária de bordo lhe “deu a oportunidade de viajar para diversas regiões do país e ao redor do mundo”. Tenho amigos que passaram pela profissão: eles dizem que geralmente havia tempo apenas para ver a cidade desconhecida pela janela de uma van ou do hotel ou, quando muito, fazer um city tour de turista. Eu proponho que a senhora faça mais do que isso, agora que é vereadora: conheça Curitiba. A vereadora Carol Dartora, que me parece uma pessoa generosa, pode lhe mostrar uma cidade que a senhora e eu pouco ou nada conhecemos. E que é sub-representada, quando o é, na Câmara Municipal.

Cordialmente,

Rafael Moro Martins, editor contribuinte sênior no The Intercept Brasil.

 P.S. 1: Quantos negros havia em sua turma no curso do Renova BR, que apesar do nome é uma iniciativa dos mesmos brancos ricos de sempre?

P.S. 2: Um grande amigo inglês que vive aí em Curitiba e se dedica a ensinar música erudita a crianças pobres nas periferias pode lhe contar como foi viver sob Margaret Thatcher sendo filho de uma família de classe média britânica. O relato dele sobre como um dia parou de haver leite para os alunos das escolas públicas (como ele e o irmão, que viviam em Burton-on-Trent, Staffordshire), é particularmente repugnante.

P.S. 3: O fato de ser um homem branco, privilegiado o autor deste texto sobre questões que precisam ser ouvidas nas vozes de pessoas negras é um exemplo acabado do nosso racismo estrutural.

Sobre o/a autor/a

2 comentários em “Carta aberta à vereadora Amália Tortato”

  1. Oi, César. Não se trata de culpas, apenas da capacidade de reconhecer meus privilégios e ter empatia por quem é diferente de mim. Experimente tentar: não dói e vai te fazer um homem branco melhor. Abraço, Rafael.

  2. mais um texto de uma pessoa cheio de culpas vivendo em Nárnia, ops, Brasília, e que acredita que todos devem pensar e sofrer como ele.

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