O cristianismo do companheiro Renato Freitas

O cristianismo do companheiro Renato se expressa sobretudo por sua prática, por sua sincera indignação contra as muitas e inaceitáveis injustiças que se mantêm na sociedade brasileira

Embora não tenha estado presente na manifestação antirracista na Igreja do Rosário, em 5 de fevereiro, peço licença para também opinar sobre esse tema, dirigindo-me, especialmente, às pessoas que defendem a cassação do vereador Renato Freitas, ou que tenham dúvidas a esse respeito.

Não é o caso de repassar os eventos daquele dia, nem eu seria o mais indicado para fazê-lo. Penso, de todo modo, que ficou estabelecido que, embora a manifestação tenha se dado também dentro da igreja, não houve “invasão”, muito menos interrupção da missa.

Esse ponto de vista, inclusive, foi expresso pela própria Arquidiocese de Curitiba, que, em documento enviado em 28 de março ao Conselho de Ética e Decoro Parlamentar da Câmara de Vereadores, expressa sua posição contrária à cassação do mandato de Renato Freitas (ainda que tenha sugerido “medida disciplinadora proporcional ao incidente”).

Mesmo assim, ainda na sessão de 9 de fevereiro da Câmara Municipal, o companheiro Renato pediu “perdão”. Por que o fez, se não houve propriamente “culpa” em seus atos? A resposta encontra-se na mesma fala: porque o companheiro Renato é cristão. Em suas palavras:

“Algumas pessoas se sentiram profundamente ofendidas e a elas eu peço perdão, pois não foi, de fato, a intenção de magoar ou ofender o credo de ninguém, até porque eu mesmo sou cristão.”

Conheço o Renato há quase 15 anos, desde que ele ainda era estudante de Direito da UFPR, e sobre seu cristianismo eu mesmo quero dar testemunho.

Durante a pandemia, tive a alegria de receber a visita dele em minha casa, justamente para debatermos temas bíblicos. Por quase sete horas, conversamos sobre a saída do povo de Deus do cativeiro do Egito, sobre a Revolta dos Macabeus contra a dominação dos Selêucidas na Judeia, sobre os cem anos de insurreições judaicas contra o Império Romano, sobre, enfim, o contexto histórico em torno da vida de Jesus de Nazaré (tomando por base o livro Zelota, de Reza Aslan).

Mas não se trata apenas de teoria. O cristianismo do companheiro Renato se expressa sobretudo por sua prática, por sua sincera indignação contra as muitas e inaceitáveis injustiças que se mantêm na sociedade brasileira.

O ato do dia 5 de fevereiro foi motivado pelas mortes de dois homens negros no Rio de Janeiro. O local escolhido para a manifestação foi a Igreja do Rosário, construída e frequentada, desde o século 18, pela população negra de Curitiba.

Em verdade, tanto o judaísmo quanto o cristianismo se confundem com a luta histórica de populações negras. Hoje é consensual nos estudos bíblicos que Jesus não era um homem branco de olhos azuis, mas um galileu de pele escura. Importantes comunidades judaicas e cristãs viveram e floresceram nas grandes cidades do Norte da África, sobretudo Alexandria. Uma das primeiras nações cristãs foi a Etiópia, do que dá testemunho o batismo, pelo apóstolo Filipe, de um alto funcionário da rainha etíope, narrado no livro de Atos (8:26-40). O próprio Santo Agostinho era africano, da cidade de Hipona, na Argélia atual.

Nesse contexto, os cristãos e cristãs verdadeiramente comprometidos/as com sua fé têm sempre sofrido as mais obstinadas perseguições. A maior delas, evidentemente, acometeu o próprio Cristo, submetido a torturas e humilhações arbitrárias e cruéis e, por fim, à terrível morte por crucificação, impetrada por autoridades do Império Romano e seus aliados na elite de uma nação submetida à dominação colonial.

Mas há várias outras, como as mortes e prisões relatadas no livro de Atos dos Apóstolos. Por apenas testemunhar sua fé, Estêvão foi cruelmente apedrejado até a morte (7:57), fato que desencadeou “uma grande perseguição contra a Igreja” e a dispersão da comunidade cristã de Jerusalém (8:1). Os apóstolos foram presos e açoitados (5:18, 40). Tiago, irmão de João, foi sumariamente executado a mando de Herodes (12:2). E Paulo foi covardemente espancado quando saía do Templo de Jerusalém (21:27-31), um episódio que levaria à sua prisão e, posteriormente, à sua morte em Roma.

Nada disso, no entanto, impediu que o cristianismo dos primeiros séculos afirmasse seu vínculo visceral com a igualdade humana. Num dos trechos mais conhecidos de suas epístolas, Paulo afirma que, em Cristo, “não há judeu nem grego, não há escravo nem livre, não há homem nem mulher” (Gálatas 3:28), um antigo credo que só pode ser compreendido como um compromisso contra toda espécie de desigualdade social, étnico-nacional e de gênero.

Todos esses elementos, eu os vejo presentes na vida e na militância do companheiro Renato Freitas. Não se trata da atuação de um escriba ou de um hipócrita, mas de alguém devotado a afirmar uma verdade para os vivos e não para os mortos (Mateus 22:32).

Superando uma situação inicial desfavorável, enfrentando violências que afetaram sua vida pessoal, o companheiro Renato Freitas logrou formar-se advogado e concluir o mestrado na Universidade Federal do Paraná. Para tanto, contou com o corajoso apoio de sua mãe, mulher brasileira que traz no sangue a força da cidade paraibana de Princesa.

Mas, contraditoriamente, essa realização acadêmica e política, que a nós nos causa tanta admiração, a outros talvez cause espanto e, quem sabe, um difuso desconforto. Uma reação semelhante, me parece, à do tribuno que prendeu o apóstolo Paulo nas escadarias do Templo de Jerusalém. Julgando que não passasse de um conhecido bandido da época, o oficial romano se espanta quando descobre que Paulo não apenas falava grego, como era inclusive cidadão romano (Atos 21:37; 22:27-28).

O que fazer com alguém assim? Que nasceu para ser marginalizado, mas cresceu e se formou, mantendo-se, entretanto, no campo das lutas populares?

A atuação do vereador Renato Freitas ainda aguarda sua avaliação definitiva pela Câmara Municipal de Curitiba. As pessoas encarregadas desse julgamento certamente buscarão se guiar pelos princípios da justiça e da ponderação. Muitas delas são cristãs, e essa fé penso que desempenhará certo papel no processo.

Foi precisamente para auxiliar essa reflexão que este texto foi escrito. Para afirmar o compromisso humano e cristão da militância do companheiro Renato. Para reivindicar que ele mantenha o mandato que lhe foi democraticamente outorgado por uma parcela importante do povo de Curitiba.

Sobre o/a autor/a

6 comentários em “O cristianismo do companheiro Renato Freitas”

  1. Considero o ato de invasão do templo uma agressão aos que ali estavam. O vereador deveria dar o exemplo de comportamento pacifico. E tem muitas multas com o carro que usa na CMC. Difícil aceitar suas atitudes.

  2. Infelizmente não tenho a mesma fé do articulista. Espero estar errado., mas a depender dos cristãos da CMC o ver. Renato Freitas será cassado. Tratam-se de uns fariseus e hipócritas que não perdoam aqueles que não conciliam e/ou fazem os conchavos. A CMC não é um Poder, mas um anexo paroquial. Não sabem que Renato é jovem e voltará mais forte ou que virão outros Renatos.

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