Reforma no Ensino Médio: itinerários para um lugar nenhum

Os adolescentes precisam de uma educação que faça conviver a tradição com a mudança

Os números do Ensino Médio no Brasil são lamentáveis, disso não há quem duvide. A evasão extraordinária, o percentual de jovens fora da idade certa, a precariedade da formação ao final do percurso, a insuficiência de professores com qualificação, os resultados vergonhosos nas avaliações internacionais, são alguns argumentos irrefutáveis de que alguma coisa precisava ser feita há muito tempo. E a ideia que agora começa a ser implementada é a de um Ensino Médio que se descole tanto da ideia de uma continuidade de estudos, chamados de superiores, quanto da ideia de uma formação comum que garanta a continuidade da herança historicamente acumulada. No seu lugar, uma base de natureza instrumental – língua portuguesa e matemática – e as demais disciplinas formando blocos amplos a serem ofertados ora em uma série, ora em outra, ao lado do que se julgou apropriado chamar de “projetos de vida”, além de itinerários formativos, cujo propósito é o de aprofundar e integrar um suposto ponto A a um imaginário ponto B, ao bel prazer das escolas.

Ou seja: havia um esforço de uma escola comum, com um currículo comum, com o propósito de consolidar uma base de conhecimento comum para todos os jovens, de maneira a inteirar a todos no conjunto de conhecimentos com os quais podemos nos destacar como indivíduos e nos reconhecer como cidadãos. Uma espécie de herança a ser carregada, como uma tocha olímpica, de geração para geração.

Como ressalta a pensadora Hannah Arendt: O testamento, dizendo ao herdeiro o que será seu de direito, lega posses do passado para um futuro. Sem testamento ou, resolvendo a metáfora, sem tradição – que selecione e nomeie, que transmita e preserve, que indique onde se encontram os tesouros e qual o seu valor – parece não haver nenhuma continuidade consciente no tempo, e portanto, humanamente falando, nem passado nem futuro, mas tão somente a sempiterna mudança do mundo e o ciclo biológico das criaturas que nele vivem.

Essa experiência de Ensino Médio não vinha dando certo não pelo que pretendia mas pelos erros de implementação, gestão e financiamento. Ou seja, o que se quis sempre com a Educação Pública foi preparar as novas gerações para o seu futuro individual e para o futuro comum, isto é: sucesso pessoal e contribuição e compromisso coletivo em manter as bases da Democracia e Liberdade de uma Nação próspera e solidária. A adolescência é, nesse projeto de Educação, um período chave no qual a transmissão da tradição precisa dialogar fortemente com os desejos de mudança e de invenção próprios da idade. Uma escola com espaços públicos de diálogo e participação, com compreensão clara da importância dos saberes transmitidos e compartilhados, por meio de adultos preparados e comprometidos com um formação para o crescimento do indivíduo e do cidadão, permitiriam resultados muito mais expressivos do que a miséria que testemunhamos nos dias atuais.

Ou seja, o que poderia ser feito não era esgarçar e retalhar o tecido da formação dos jovens, criando ambientes de esvaziamento do saber compartilhado, travestidos de itinerários, como se os jovens soubessem onde estão e para onde querem ir, mas reconhecer a precisão de refundar o projeto de cidadania que está na origem da escola pública de qualidade, por meio da transmissão e compartilhamento dos saberes fundamentais para a construção de um futuro comum e mais satisfatório para todos.

Como afirma Paul Willis, jovens estão todo o tempo expressando ou tentando expressar alguma coisa sobre seu verdadeiro, ou potencial, significado cultural. Esse é o domínio da “viva” cultura de massas. Algumas vezes vulgar, quem sabe. Mas também “comum” no  estar em qualquer lugar, resistente, árdua. Também comum no  ser repartida, compartilhada, ter coisas em comum.

Uma reforma do Ensino Médio não devia abrir mão dos conteúdos comuns que possibilitam esse diálogo, porque não é isso que os jovens querem. Eles estão à espera de uma escola que escute, que dialogue, que tenha paciência, que se retrate, que crie espaços, que compreenda as urgências e prioridades dos momentos, mas igualmente que não deixe de ser uma voz que traga do passado os valores e os conceitos com os quais os jovens possam tecer seu futuro, um futuro que não é só ruptura ou interrupção mas, fundamentalmente, construção geracional, pelo menos naquilo que tem de mais promissor e esperançoso.

“Vazios” não existem pela falta de ação humana. Ao contrário, foram arduamente construídos, ao longo de décadas de prepotência e insensibilidade. Espera-se que a construção de “pontes” para atravessar os “vazios” não demande tanto tempo e nem se perca em fórmulas para agradar . Basta que  possa se tornar “querida”, “pessoal”, “íntima” dos jovens, sem que seja necessário que lhes seja idêntica. Mas que seja fundamental que se identifique com eles. Assim, a herança, que temos a obrigação moral de passar a estas gerações que nos sucederam, estará em boas mãos. E o futuro do nosso passado também.

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