Lições sobre a “cura da Covid-19”

Supondo que o “estudo” tivesse sido conduzido com rigor científico, e que os números apresentados, para cada um dos grupos, fossem o retrato de uma retidão metodológica, certamente não poderíamos atestar, nem de longe, que as condutas bioéticas foram seguidas

Recentemente, uma publicação relacionada à pandemia tem produzido muita repercussão junto à comunidade científica, nacional e internacional. Este artigo (https://doi.org/10.1136/bmj.n2819), publicado na respeitada revista British Medical Journal (BMJ Medicine) aponta para uma série de violações bioéticas, e de direitos humanos, cometidas durante a condução de um “estudo” (irei me referir a ele sempre entre aspas) que testou os efeitos do antiandrogênico proxalutamida como uma possível terapia contra a Covid-19. Antes de falarmos dos problemas do referido “estudo”, devemos resgatar alguns elementos que sustentam o conceito de bioética. Originalmente, este termo foi introduzido em 1927 por Fritz-Jahr, um pastor protestante que, estando imbuído pelo espírito antropocentrista, estendeu a concepção de biopsicologia para animais e plantas. Portanto, o eixo direcionador da bioética baseia-se na aceitação das obrigações morais que temos para com todos os seres vivos, abrangendo, portanto, esta interpretação até os seres humanos. Ou seja, o principal imperativo que governa o pensamento bioético é o de que os seres humanos são os únicos dotados de uma racionalidade moral, sendo que tal condição impacta diretamente sobre as vidas de outros de sua espécie e, também, de todas as demais. Embora possua essa clara herança intencionalista Kantiana, portanto com grande enraizamento no senso comum de nossa sociedade, a bioética ainda passa muito longe de um debate na arena pública, mesmo num contexto de pandemia, como o que vivemos. Logo, chama a atenção quando uma reflexão dessa ordem toma proporções maiores do que a média. E a razão para tamanha comoção se deu em função deste “estudo”, tornado público num repositório online – portanto sem nenhum tipo de revisão por pares – (MedRxiv) que reportou ter havido 11% de mortalidade no grupo que recebeu a proxalutamida e impressionantes 49,4% de mortalidade (cerca de 200 óbitos) no grupo controle.

Supondo que o “estudo” tivesse sido conduzido com rigor científico, e que os números apresentados, para cada um dos grupos, fossem o retrato de uma retidão metodológica, certamente não poderíamos atestar, nem de longe, que as condutas bioéticas foram seguidas. Senão vejamos, um estudo em que um grupo controle começa a apresentar uma assustadora elevação de mortalidade, comparado ao grupo experimental (tratado com algum medicamento), exigiria uma imediata intervenção, por parte dos pesquisadores, para se evitar um desfecho trágico. Esta intervenção, claramente, seria no sentido de interromper o estudo, e toda a sua randomização, em benefício do melhor tratamento a todos os pacientes, inclusive dos que formavam o grupo controle. Entretanto, esta conduta corretiva só poderia ter se tornado realidade se os efeitos terapêuticos da proxalutamida fossem robustos e reprodutíveis, informação esta que é alegada pelo “estudo” que, inclusive,  afirmou que a mortalidade no grupo tratado foi reduzida em 77,7%.

Portanto, se os autores tomarem seus resultados por verdadeiros, confessam terem privado os voluntários do grupo controle de sobreviverem. Ou seja, teriam assumido que o melhor desfecho para o “estudo” seria aquele com centenas de fatalidades, simplesmente para provarem a sua hipótese em favor da proxalutamida. Uma outra interpretação que podemos levantar é a de que os dados foram intencionalmente manipulados em benefício de um resultado “favorável” ao suposto efeito terapêutico da proxalutamida, que, inclusive, ainda se encontra em fase de testes para o tratamento de câncer de próstata e de mama. Supondo que tenha sido este o desvio de conduta, estaríamos diante de uma manipulação de dados que teria surgido como consequência de uma imensa porcentagem de mortes em ambos os grupos, talvez até maior no grupo tratado (a conferir, caso haja alguma investigação). Em ambas as interpretações, flagramos a transgressão do imperativo ético da racionalidade moral da bioética, tornados substantivos com o assustador número de óbitos patrocinado pelo referido “estudo”. Também chama atenção a cândida complacência dos conselhos regionais e federal de medicina que, supostamente, em defesa da autonomia médica, e de seus atos, não sinalizam, claramente, à sociedade, com a condução de sindicâncias para a apuração de erros de conduta, supostamente, perpetrados neste ou em outros “estudos”.

Podemos dizer que a ancestralidade da ética nos ensina (na bioética) que um critério pode ser tomado como objetivo quando todos os consultados (como os cientistas, ou quaisquer outros agentes sociais) forem obrigados a considerá-lo como inevitável, pertinente e indispensável. Esta força motriz que deve reger os consultados é de natureza intrínseca, portanto moral, e tem na manutenção e respeito à vida os seus maiores argumentos objetivos. Uma ciência falsa pode ser mantida por meio de uma desobediência a esta estrutura, voltando-se para valores que encontram eco em algumas parcelas da sociedade  que entendem que uma doença deve ser tratada a partir de critérios oriundos de grupos políticos, e não científicos. A publicação da BMJ Medicine é uma alerta, internacional, de que estamos diante da tentativa de perpetuação de uma falsa ciência, gerando, em última instância, consequências nefastas reais na figura de suas vítimas diretas e indiretas, além de uma deterioração da própria ciência como estrutura epistemológica.      

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