Quando nos tornamos tão mesquinhos?

O mínimo que uma cidade pode esperar de si mesma é que todos seus habitantes estejam em segurança

O Plural noticiou outro dia algumas razões pelas quais pessoas em situação de rua em Curitiba escolhem ficar no frio e não serem acolhidas em abrigos da cidade nos dias mais frios. A matéria, como outra veiculada no UOL TAB na mesma semana, e uma terceira, publicada pela revista Piauí, revisita questões já conhecidas por quem acompanha o tema. Na rua alguns se sentem mais respeitados do que dentro dos abrigos mantidos pela prefeitura.

Na mesma semana, o prefeito da capital, Rafael Greca, decidiu comentar que a herança “escandinava” da cidade é um “Brasil diferente”, acostumado com o frio, em mais uma demonstração cabal de que nosso principal gestor não conhece a cidade que comanda (bem como não entende de geografia, nem sabe que frio e neve não é exclusividade européia). O frio é lindo, esqueça as milhares de pessoas passando fome e frio nas ruas porque isso é melhor do que se submeter ao assistência social da prefeitura.

Mas o que mais me chamou a atenção foram os comentários feitos na reportagem de Jess Carvalho. As pessoas se incomodaram o suficiente para deixar registrado por escrito que se os que estão nas ruas não querem o que é ofertado, que fiquem na rua. Teve até quem se ofendeu com a entrevistada que reclamou da falta de shampoo e condicionador nos abrigos. Se está na rua, que aceite tomar banho com um pedaço de sabonete, defendeu o leitor.

É um pensamento que, claro, encontra ressonância em parte da população. Uma população que gosta de ser caridosa, mas que ao ser “generosa”, colocar quem está vulnerável num corredor polonês de exigências. Tem horário para chegar, para comer, para dormir, para acordar. Para ganhar um café e uma sopa é preciso ouvir a pregação religiosa. Se for para ficar aqui, não pode ter bebido, ali não pode ter animal de estimação. Casais não podem ficar juntos (deusolivre querer fazer sexo). A cavalo dado não se olha os dentes, não é mesmo?

É uma caridade que serve mais de alento para a alma de quem a oferece do que de ajuda para quem recebe. Mesmo assim em situações limite é preciso colocar em primeiro lugar o bem-estar do outro, não nossas próprias limitações morais.

A previsão na semana que passou era de temperaturas abaixo de 0. Estamos na capital do Paraná, lar da mais antiga universidade do país, temos dois milhões de habitantes, mas não podemos garantir um banho quente com sabonete, shampoo e condicionador para pouco mais de duas mil pessoas? Quando foi que nos tornamos tão mesquinhos, tão vis, tão desumanos? Por causa de um vidro de shampoo?

Óbvio que nem a reportagem de Jess Carvalho, nem a do UOL ou a da Revista Piauí encerram o assunto. A permanência de pessoas na rua é um problema social complexo e, sim, há casos de abuso do álcool e uso de substâncias entorpecentes, muito embora não seja possível afirmar que todas as pessoas acabam nas ruas por conta disso. Há os que passam a consumir álcool e drogas ilegais para suportar a dureza da vida sem casa.

De qualquer forma, quem quer ajudar pessoas em risco não pode esperar contos de fada, histórias de superação. Ninguém está na rua por opção. Porque está economizando para chegar ao primeiro milhão – morra de hipotermia enquanto eles dormem.

Mas um fato é bastante claro: o inverno em Curitiba pode ser rigoroso e matar pessoas. O que torna muito simples o caminho a se seguir numa sociedade civilizada: é preciso proteger quem está em risco. Se a temperatura vai cair, é preciso abrir as portas de abrigos, igrejas, organizações para garantir proteção para essas pessoas nos dias frios. Abrir as portas significa abrigar essas pessoas temporariamente da forma como elas vivem, com seus bens, com suas famílias, com seus animais.

Curitiba precisa voltar a ser humana. Não precisa de Fab labs e prêmio de tecnologia se não pode dizer que consegue, num dia de frio, garantir que todos seus habitantes estejam em segurança. É só isso. É simplesmente isso. E para isso o empecilho não está em quem está na rua. Está em quem acha razoável por obstáculos entre uma situação de risco e a dignidade humana. Isso infelizmente tecnologia nenhuma sabe ainda como resolver.

Sobre o/a autor/a

5 comentários em “Quando nos tornamos tão mesquinhos?”

  1. É como canta Emicida:

    “Eles querem que alguém
    Que vem de onde nós vem
    Seja mais humilde, baixe a cabeça
    Nunca revide, finja que esqueceu a coisa toda”

  2. Toda as cidades merecem investir no seu povo e começando por garantir direitos a vida digna e protegida p/aquelas tantas pessoas q não possuem nem o básico da sobrevivência.
    Curitiba merece ser humana com seu povo sofrido, com fome e com frio JÁ

  3. Sandra Mara Stroparo

    Rosiane, é isso mesmo, precisamos aprender o que é, de fato, solidariedade, e não mera filantropia que deixa alguns confortáveis. E o texto da Jess é muito bom ao mostrar os lados do problema.

  4. João Pedro Schonarth

    Obrigado, Rosiane, por expor essa realidade de maneira tão didática.
    Se não tivermos clareza que a razão pela qual milhões de pessoas se reúnem dentro de uma linha linha imaginária, que chamamos de fronteiras, não é para proporcionarmos uma vida digna para todos nós – e que só estaremos verdadeiramente bem quando todos tivermos no mínimo uma vida com dignidade – não sei o que estamos fazendo como humanidade.
    Obrigado pelo desabafo, está difícil de viver em um mundo tão mesquinho.

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